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Cristina de Luca

PL dos apps de transporte pode inviabilizar bem mais do que o Uber e afins

Cristina De Luca

31/10/2017 10h55

A semana iniciou com o debate acalorado sobre a votação do PL 28, que regulamentará o transporte por aplicativos no Brasil. As empresas 99, Cabify e Uber se uniram em uma campanha na Internet contra a aprovação (#juntospelamobilidade), que já arrecadou mais de 800 mil assinaturas dos seus usuários contra o projeto desde o fim de setembro. O Uber começou a veicular anúncios em horário nobre na TV aberta. E o seu CEO e presidente,  Dara Khosrowshahi, desembarcou esta semana no Brasil para tentar influenciar o Senado, onde o projeto será votado, provavelmente hoje ainda. Em entrevista ao jornal O Globo,  o executivo disse que defende um modelo de regulação que preserve o direito dos consumidores, que leve em conta a força da tecnologia e a flexibilização das relações do trabalho.

Para Dara Khosrowshahi, a aprovação do PLC 28 será negativa para as empresas de transporte por aplicativos. Os motivos estão enumerados em um e-mail enviado a todos os usuários do app:

1. Exige que os veículos tenham placas vermelhas iguais às dos táxis
2. Autoriza os municípios a proibirem os apps quando quiserem
3. Faz com que os motoristas parceiros precisem de uma autorização específica, que pode ou não ser concedida
4. Todos os motoristas precisam ter veículos próprios – não se pode dividir com seus familiares ou alugar carros
5. Proíbe os veículos de circularem em cidades vizinhas, como em regiões metropolitanas.

Dos cinco pontos, eu diria que o item dois é o cerne da questão. Em muitas cidades do Brasil e do mundo, os motoristas do Uber e dos apps de transporte, como o 99 e o Easy, já cumprem algumas dessas obrigatoriedades.

Em muitas cidades o app foi proibido e em outras, regulamentado. No Brasil, a proibição do serviço sempre foi contestada. Em 2015, a ministra  Nancy Andrighi,  corregedora nacional de Justiça, chegou a afirmar que municípios e Estados não têm o poder de legislar sobre aplicativos como o Uber.

A diferença, agora, é que a proibição se estende a outros apps.

Ontem, a 99 enviou a jornalistas e formadores de opinião um e-mail no qual faz considerações sobre o PL. Diz a empresa que é contra essas medidas e acredita que a sociedade deve se mobilizar contra elas porque:

1. A  legislação é ruim para o emprego: 500 mil motoristas dependem dessa renda para sobreviver, especialmente em tempos de crise.
2. Ela é ruim para o mercado: seus principais defensores são taxistas corporativistas que querem acabar com a liberdade de escolha.
3. É ruim para os usuários: 17 milhões de pessoas usam esses aplicativos e já se acostumaram com eles.
4 . Por fim, é um atraso tecnológico.

E eis aí outro motivo de preocupação: o atraso tecnológico.

"O maior problema é essa possibilidade de proibição municipal", diz Carlos Affonso, diretor do Instituto de Tecnologia & Sociedade do Rio de Janeiro. Pode abrir brechas perigosas, segundo ele, bem explicadas no texto do ITS, intitulado "Apps de Transporte e o PLC 28/2017: o Brasil pode ficar a pé na corrida pela inovação", que  me autorizou reproduzir aqui, na sequência.

"Vamos combinar que o Brasil perdeu a primeira onda de inovação na Internet. As redes sociais e os sites de vídeo onde os brasileiros brilham não foram concebidos aqui. O País entrou atrasado na corrida pela inovação na rede, mas nem tudo está perdido. A Internet móvel, com a sua possibilidade gigantesca de gerar aplicativos para coisas que você nem sabia que precisava, transforma vidas com enorme velocidade: apps de mensagem de texto (que também fazem ligações), de namoro, para ouvir música, para pedir comida, para assinar projetos de lei e também para se deslocar dentro da sua cidade.

Essa segunda onda de inovação o Brasil ainda pode aproveitar. O que não faltam são pessoas com grandes ideias para revolucionar o nosso cotidiano com soluções que, uma vez implementadas, nos fazem pensar: como vivi sem isso antes? Esse é o caso dos aplicativos que unem pessoas interessadas em se deslocar em centros urbanos e motoristas dispostos a fazer a corrida. Tudo intermediado por diversas plataformas acessíveis através de qualquer dispositivo móvel.

O que poderia impedir o Brasil de usufruir dessas facilidades e de criar um ambiente que permita novos modelos de negócio ancorados nessa ideia? Em uma palavra: burocratização. Falamos em burocratização, e não em regulação, porque entendemos que a regulação de um segmento como o de transporte privado individual pode trazer segurança jurídica para as empresas e usuários desses aplicativos. Mas a regulação, nesse sentido, deve ser cosmética, evitando cair nas armadilhas da burocracia e com isso impedir a inovação.

Infelizmente será essa a realidade caso o Senado Federal aprove o Projeto de Lei da Câmara ("PLC") 28/2017, cujo objetivo é regulamentar o transporte remunerado privado individual de passageiros. O título em si não revela o quanto de burocratização a proposta criaria, talvez como resultado de pressões de grupos contrários à atuação no País de aplicativos como o Uber, Cabify e 99 Pop. As empresas que operam esses aplicativos fizeram uma campanha contra a aprovação do projeto, apelidando o mesmo de "lei do retrocesso".

Mas o que diz o projeto? Ele proíbe os aplicativos? A princípio não. É importante entender que o projeto, diferente de outros que foram aprovados em algumas cidades (e geralmente superados por ordens judiciais), não proíbe diretamente os aplicativos. Por outro lado, praticamente equipara as atividades desenvolvidas pelos apps ao regime de táxi. Dentre as suas disposições, o PLC (i) exige que os veículos tenham placas vermelhas (iguais ao táxi); (ii) disciplina que os motoristas parceiros precisam de uma autorização especial para a oferta do serviço, que pode ou não ser concedida; (iii) exige que os motoristas usem veículos próprios (o que impede o seu uso por familiares); e finalmente (iv) deixa na competência das Prefeituras autorizar ou não a atividade na cidade.

Manifestações contrárias vêm sendo expostas nas redes sociais. A hashtag #leidoretrocesso chegou a ocupar os trending topics mundias no Twitter. A enquete feita no site do próprio Senado revela o grau de descontentamento com a medida. O Senado, vale lembrar, na semana passada aprovou a tramitação do PLC em regime de urgência. Ou seja, ele pode ser votado a qualquer momento. Será que vai ser hoje? Se o texto for aprovado do jeito que está ele vai direto para a aprovação (ou não) pelo Presidente da República.

Como forma de contribuir para um melhor debate sobre o tema, o ITS Rio gostaria de pontuar algumas questões que poderiam ser levadas em considerações pelos senadores.

1. O Senado não tem urgência em regular a matéria. O tema está começando a ser discutido na Câmara em Comissão Especial. No mundo, o debate regulatório ainda está sendo definido. O PLC 28/2017 é uma medida apressada, que cria inúmeras restrições a uma atividade que vem sendo desenvolvida no País e no mundo e que conta com ampla aceitação por parte de seus usuários. Aprovar o texto como está nesse momento significa dar um passo atrás em um diálogo que está amadurecendo aqui e no exterior. Na Câmara dos Deputados, foi criada a Comissão Especial sobre o Marco Regulatório da Economia Colaborativa. Dentro do conceito de economia colaborativa, estão justamente as atividades de transporte individual privado (Uber, Cabify, 99) e a locação de casas e apartamentos por curtos períodos de tempo (Airbnb). A referida Comissão terá a oportunidade de refletir sobre uma regulação que não seja tão focada a ponto de perder o contato com um debate mais amplo. É preciso inserir a discussão sobre transporte dentro do debate regulatório maior da economia colaborativa e a Câmara já deu início a esse trabalho. A Comissão realizou duas audiências públicas gerais e pretende abordar os setores que são transformados pela expansão dos aplicativos. Aprovar o PLC 28/2017 agora significa prejudicar o trabalho da Câmara ou, na melhor das hipóteses, ver uma lei aprovada agora que precisará ser mudada assim que a Comissão entregar as suas propostas de projetos de lei.

No exterior, vale a pena destacar a experiência europeia sobre o tema. Em 2016, a Comissão Europeia divulgou um documento chamado "Uma Agenda Europeia para a Economia Colaborativa". Dentre as recomendações do texto europeu está a recusa ao mecanismo de proibição de aplicativos, a redução ao máximo de barreiras à entrada de novos agentes econômicos nos diversos setores, restringindo a necessidade de permissões ou autorizações, além do incentivo a um debate sobre direitos do consumidor. O PLC parece caminhar em sentido contrário: ele cria a possibilidade de proibições por parte das Prefeituras, cria a exigência de autorizações para motoristas e assim prejudica os consumidores que hoje podem se valer dessa atividade.

2. Os aplicativos de transporte geram oportunidade de remuneração em tempos de crise. Quantas pessoas dependem hoje no Brasil dos aplicativos de transporte individual para garantirem o sustento de si mesmas e de suas famílias? Diferente do que já foi afirmado pela Presidente Dilma, aplicativos como Uber, Cabify e 99 não "tiram emprego", mas sim criam novas oportunidades. Especialmente em tempos de crise, com os números do desemprego se avultando, não parece apropriado que o Senado crie tamanhos embaraços para uma atividade que garante a tantos uma renda para enfrentar esse período.

3. A legislação brasileira prestigia a liberdade e a inovação. O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) elenca como princípios da disciplina do uso da Internet no Brasil a liberdade dos modelos de negócios promovidos na rede, a livre iniciativa e a livre concorrência. O PLC caminha em sentido contrário ao criar burocracia e um regime de autorizações que não é compatível com uma regulação que estimule a inovação.

Se o Brasil não foi um campeão de inovação na Internet, até aqui, ele vem liderando o debate sobre regulação da rede de modo a criar condições para um desenvolvimento econômico ancorado na liberdade e na inovação. Aprovado em 2014, o Marco Civil da Internet colocou o País no centro dos debates regulatórios, tendo a experiência brasileira servido de inspiração para iniciativas na Itália e na França.

O Brasil não deve recusar a oportunidade de liderar também a onda de inovação com aplicativos que possam impulsionar a chamada economia colaborativa. Trata-se de um novo paradigma econômico global de superação da lógica do consumo em massa e acumulação de bens para a transição em direção a uma economia compartilhada, baseada no uso de tecnologia da informação em prol da otimização do uso de recursos por meio de sua redistribuição e compartilhamento e do aproveitamento de suas capacidades excedentes.

Dessa forma, ao desconsiderar a existência de uma Comissão Especial dedicada ao tema na Câmara e o debate que ainda amadurece no plano internacional, ao mesmo tempo em que confere urgência a um projeto atropelando qualquer discussão, o Senado dá as costas à liberdade e à inovação.

O Senado deveria rejeitar o PLC 28/2017 como se encontra e apoiar um debate mais amplo sobre o tema dos aplicativos de transporte, inserindo os mesmos na discussão sobre economia colaborativa, como faz a Câmara Federal, a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu. Seguir adiante com esse texto é, no final das contas, um retrocesso.

Não deixe o Brasil ficar a pé na corrida pela inovação!"

Além de tudo o isso, com todas as exigências inseridas no PL, ele pode acabar abrindo uma brecha perigosa também para um mercado informal de autorizações e, infelizmente, de propinas.

Em vez de reduzir a quantidade de taxas e licenciamentos ao mínimo, acabando com as verdadeiras máfias que aproveitam as exigências feitas aos taxistas, ele acaba estendendo esse ciclo perde-perde também ao transporte particular.

Sem falar na possibilidade de criação de uma reserva de mercado para prefeituras que quiserem lançar seus próprios apps.

E pensar que o primeiro PL submetido ao Congresso, era totalmente favorável aos apps.

Como é difícil chegar a um bom termo…

Desde ontem, começou a circular em Brasília a informação, publicada pelo Poder 360,  de que em um acordo costurado entre os poderes Legislativo e Executivo, a Casa Civil concordou em vetar 2 pontos:

1. obrigatoriedade da placa vermelha;
2. necessidade de o motorista ser proprietário do veículo utilizado nas corridas dos aplicativos.

Pelo acordo, os senadores fariam apenas mudanças de redação do projeto, o que permitiria levar a matéria direto à sanção sem retornar à Câmara.

A ver.

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.