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Cristina de Luca

O fim da neutralidade de rede nos EUA pode respingar aqui?

Cristina De Luca

15/12/2017 11h55

No curto prazo, o fim do princípio de neutralidade de rede nos Estados Unidos, se confirmado pelo Congresso norte-americano, respingará no Brasil levemente. Em fóruns técnicos, as operadoras já pregam a flexibilização da neutralidade conforme regulamentada em decreto presidencial que complementa o Marco Civil da Internet. Vale lembrar que a nossa "Constituição da Internet" sacramenta, em seu artigo 9º, que o "responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação".

Em nota enviada aos jornais, liberada logo após à votação da FCC que derrubou as regras sobre neutralidade, o SindiTelebrasil defende o que chama de "neutralidade inteligente", que permita às operadoras, provedoras de acesso, "gerenciar o tráfego nas suas redes com o objetivo de melhorar a qualidade e a experiência do usuário".

O texto é claro. Fala sobre gerência da rede sem discriminar os iguais dentro da rede.

O conceito de neutralidade de rede está baseado na não discriminação de serviços, conteúdos ou aplicações na rede. O setor de telecomunicações é a favor da neutralidade da rede aplicada de forma inteligente, permitindo às empresas gerenciar o tráfego nas suas redes com o objetivo de melhorar a qualidade e a experiência do usuário.

Isso é necessário pois as aplicações e serviços na internet possuem características distintas e exigem configurações diferentes nas redes para que possam ser usufruídos pelos usuários com a melhor qualidade possível. Isso não implica em discriminar serviços que são semelhantes (uma aplicação de vídeo em relação a outra, por exemplo) mas sim em tratar cada tipo de serviço, dentro das redes, da forma mais adequada tecnicamente. Isso se aplica também às novas aplicações de Internet das Coisas, que serão o motor da nova transformação digital e que implicam na conexão de máquinas, objetos, sensores, etc.

Por essa razão, o setor defende que, sob ponto de vista técnico, não deveria haver regra para interferir na gestão do tráfego das prestadoras de telecomunicações. Bastaria a Lei reforçar que é assegurado aos interessados que o uso das redes se dê de forma não discriminatória, garantida pela fiscalização da agência reguladora.

Na prática, uma vez que o princípio de neutralidade está definido em lei, o SindiTelebrasil descarta a intenção de criação de pacotes diferenciados de acesso por tipo de serviço acessado, ou seja, que restrinjam o acesso de um usuário a determinado site, aplicativo ou serviço online, como acontece com os pacotes de TV a cabo. Mas defende que  as operadoras e os provedores de acesso possam aumentar e diminuir a velocidade do acesso de acordo com a natureza do serviço acessado pelo usuário.

A boa notícia é que, por enquanto, não corremos o risco de ter uma Internet como a de Portugal, onde o princípio da neutralidade da rede já foi quebrado. Por lá as operadoras cobram valores diferentes para cada serviço online, como bem explica o artigo do UOL Tecnologia.  Para isso, será preciso mudar o Marco Civil.  Ok, os Projetos de Lei estão aí para isso mesmo…. Mas a tramitação no Congresso é um processo demorado. E o ônus político para deputados e senadores pode ser grande. De qualquer forma,  precisamos estar vigilantes. O lobby das teles é um dos mais efetivos. Mas, de fato, ainda não há entre os muitos PLs que tentam alterar o Marco Civil algum que tente mexer no princípio de neutralidade de rede.

Por outro lado, a possibilidade de flexibilizar o Decreto nº 8.771/2016, que regulamenta o Marco Civil da internet,  e se dedica primordialmente a delimitar os critérios que permitem as exceções ao tratamento do tráfego de dados de forma isonômica, é maior e mais rápida. As operadoras já debatem o assunto  nos grupos técnicos que estão analisando IoT e 5G,  avaliando as questões técnicas das redes. Tanto que o estudo custeado pelo BNDES para balizar o Plano Nacional de Internet das Coisas traz ,entre suas recomendações, que o decreto seja flexibilizado, de modo a estabelecer as condições para a criação de arranjos entre o responsável pela transmissão, comutação e roteamento de dados e os provedores de aplicação. O argumento das operadoras é o de que os serviços de IoT exigem diferentes condições de tráfego. Por isso, elas precisam de flexibilidade para atender requisitos específicos, e cobrar também de forma específica.

O estudo do BNDES cita, como exemplo, a prática de zero-rating e acesso patrocinado, que membros do Comitê Gestor e a própria Anatel não consideram quebra de neutralidade, caso as ofertas respeitem a isonomia no tráfego de pacote de dados. Dessa forma, não haveria violação à norma. Mas muitos defensores das liberdades na internet e provedores de conteúdo entendem que o zero rating é uma ameaça à neutralidade de rede, já que você navega de graça em alguns conteúdos e precisa pagar para ter acesso a outros.

Em tempo, no zero-rating, os provedores de conexão isentam o tráfego decorrente de determinado provedor de aplicação da franquia de dados dos usuários, e no acesso patrocinado, o provedor de aplicação arca com o custo referente ao tráfego de dados pelo usuário.

Um risco real da flexibilização do decreto, por exemplo, é a possibilidade de respaldo para a polêmica franquia de dados na banda larga fixa. Um dos argumentos contrários à franquia na banda larga fixa mais usados pelos  órgãos de defesa do consumidor é justamente o de que ela fere o princípio de neutralidade de rede. Nos Estados Unidos, caso a decisão da FCC não caia, as operadoras poderão determinar o preço a partir do consumo do cliente. Os contratos poderão ter diferentes planos e valores de acordo com o volume de tráfego e as empresas  poderão diminuir o fluxo de dados ou cobrar caso o limite estipulado seja ultrapassado. No Brasil, já há contratos de provimento de acesso móvel e por rádio que obedecem a essa lógica.

No caso do acesso fixo via rádio, a Associação Brasileira de Provedores de Internet em Comunicações (Abrint), em conjunto com a Associação Brasileira das Empresas de Telecomunicações por Satélites (Abrasat), encaminhou à Anatel, em outubro, estudos que mostram a importância da adoção da franquia na banda larga fixa e os riscos da proibição de planos de franquia. De acordo com as entidades, a proibição da franquia inviabilizará o modelo de negócios dos provedores regionais e os provedores de banda larga por satélite. Para sobreviverem, elas serão obrigadas a aumentar o preço dos serviços.

Desde o fim de junho, o presidente da Abrint, Basílio Perez, tem circulado pelo Congresso tentando convencer os deputados a não proibirem completamente a franquia, uma vez que muitos provedores via rádio, responsáveis pelo atendimento a localidades onde as grandes operadoras não chegam,  têm restrições técnicas proporcionais às dos provedores de banda larga móvel. E a franquia faz parte dos contratos atuais, porque ajuda no dimensionamento da oferta.

"Não somos favoráveis a cortar a conexão do usuários após o término da franquia, conforme chegaram a propor grandes provedores como a a Vivo. Nem com as franquias extremamente baixas que foram anunciadas. Mas é preciso encontrar um meio termo, porque hoje muitos provedores pequenos têm franquias no seus contratos", disse ele recentemente a esse blog.

No entanto, a articulação das entidades não está relacionado o Decreto 8771. Na verdade, mira o Projeto de Lei 7182/2017, que proíbe as franquias na banda larga fixa. Já aprovado no Senado e pela Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, o PL 7182/2017 ainda precisa passar pelas comissões de Defesa do Consumidor; Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática e Constituição e Justiça e de Cidadania, antes de seguir para votação em Plenário da Câmara.

"Como está, o PL cria uma tremenda insegurança jurídica, porque será impossível honrar os contratos dos planos atuais. Nos obrigará a criar novos planos com velocidades menores ou preços maiores, o que vai acabar gerando prejuízo para os consumidores", diz Basílio Perez.  "Apesar de bem intencionado, o projeto terá efeito inverso ao desejado, prejudicando os usuários. A inexistência do instrumento da franquia tenderá a fomentar um consumo irreal ou de desperdício. A tendência natural é que as companhias, sobrecarregadas, diminuam a velocidade de seus serviços para suprir a demanda ou aumentem preços", completa.

"Imagine diminuir a velocidade média de internet no Brasil. Que retrocesso isso representaria em um momento no qual se busca a retomada do crescimento econômico? Basta pensar que em nenhum país do mundo é ilegal oferecer banda larga com franquia; em todos os lugares há opções para que diferentes perfis de consumidores adquiram pacotes que atendam às suas necessidades particulares por preço pré estipulados", analisa Luiz Otavio Prates, presidente da Abrasat.

Os estudos entregues pelas entidades à Anatel e à Câmara sustentam esses argumentos.

Voltando à importância da neutralidade de rede, desconheço qualquer estratégia já definida pelas teles, nesse momento, para forçar revisões no Marco Civil  e no Decreto, embora reportagens da Folha de São Paulo e do Valor Econômico afirmem que elas pretendem fazê-lo. Talvez, no ínicio do ano que vem. Em ano eleitoral, esse debate certamente voltará.

É importante ressaltar que, no entendimento do próprio deputado Alessandro Molon, relator do Marco Civil, ao defender o texto que da Lei durante a sua tramitação no Congresso, o desrespeito ao princípio compromete ao menos seis liberdades essenciais dos usuários da Internet: (1) a de conexão de quaisquer dispositivos, (2) a de execução de qualquer aplicativo, (3) a de envio e recebimento de pacotes de dados, (4) a liberdade de expressão, (5) a de livre iniciativa e (6) a de inovação na rede.

De fato, filtragem ou privilégios de tráfego Internet devem respeitar critérios técnicos, como prega o SindiTelebrasil, mas também por critérios éticos. Privilégios de tráfego não devem ser admissíveis por motivos interesses comerciais, políticos, religiosos ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento. Dá para ter uma economia sólida, negócios rentáveis, com uma Internet que respeite a neutralidade.

Um dos objetivos do princípio de neutralidade de rede é permitir que a internet continue um ambiente livre de interesses comerciais das grandes empresas de telecomunicações.

Nos Estados Unidos, associações civis, empresarias, procuradores e senadores já se preparam para batalhas jurídicas que derrubem a decisão da FCC.

Vale acompanhar de perto.

Aqui, a Internet Society (ISOC-br) emitiu uma nota lamentando a decisão americana e reforçando o apelo dos pioneiros da rede. Diz a nota:

Considerando as ameaças que pairam sobre a neutralidade da rede na Internet, concretizadas em repetidas declarações de autoridades do governo federal e das principais operadoras de serviços de banda larga no Brasil, apesar das proteções garantidas pelo Marco Civil da Internet (também ameaçado);

Considerando a Ordem 17-108 da FCC (Federal Communications Commission – Comissão Federal de Comunicações) dos Estados Unidos, que revogou as principais proteções à neutralidade da rede naquele país, com óbvios reflexos para as políticas de Internet no Brasil,

O Capítulo Brasileiro da Internet Society – ISOC-BR – declara seu forte apoio à manifestação dos pioneiros e líderes mundiais da Internet contra a Ordem 17-108 da FCC.

 

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.