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Cristina de Luca

Equilíbrio de forças é o pomo da discórdia na gestão da Internet no país

Cristina De Luca

22/12/2017 09h41

O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) enviou na última sexta-feira (15) ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) suas proposições para o aperfeiçoamento da estrutura de governança da Internet no Brasil. Houve avanço no processo, com consenso em vários pontos. Entre eles, a manutenção das atribuições do CGI.br e a modificação da estrutura para um modelo hierárquico em três camadas, em torno dos quatro setores (setor público, setor empresarial, terceiro setor, comunidade científica e tecnológica).  Dois balizadores do modelo de governança multissetorial para a Internet construído no país.

"Nesses aspectos, avançamos", comentou Flávia Lefràve, conselheira do CGI.br representando o terceiro setor. "Até o representante do SindiTelebrasil se comprometeu com eles", comemorou.

Outros consensos importantes entre os  três setores participantes da consulta (o governo se absteve de falar, por ter partido dela a iniciativa de reestruturar o modelo de governança e, principalmente, o próprio CGI.br) foram o compromisso e fortalecimento dos processos de transparência e responsabilização, a construção de consenso como regra de operação em todas as instâncias decisórias, o total respeito aos mandatos atuais vigentes no CGI.br, assim como as competências do CGI.br e do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br).

Os consensos obtidos não são pouca coisa, visto que versam sobre pontos que geraram debates acalorados durante a consulta pública acerca da modernização da estrutura de governança da Internet brasileira, realizada durante o VII Fórum da Internet no Brasil, no fim de novembro.

Ainda assim, a forma como esses consensos foram encaminhados ao MCTIC frustrou alguns conselheiros do CGI.br. Na opinião deles, apresentar apenas o relatório apontando os consensos setoriais e os pontos em comum entre eles, como foi feito, implicaria perder a oportunidade do CGI.br dar a sua opinião, no formato de resolução, como resultado de consenso do pleno.

Como esperado, um ponto específico impediu que se chegasse a esse consenso pleno: a dificuldade dos representantes do setor empresarial concordarem com as propostas garantindo a paridade de representação entre os setores na nova composição do CGI.br.

"É a paridade que assegura o equilíbrio de forças dentro do CGI.br", comenta o conselheiro José Luiz Ribeiro Filho, representante da Comunidade Científica e Tecnológica. "Os representantes da sociedade civil e da academia concordaram com a primeira proposta sobre paridade encaminhada pela Abranet, com manutenção do número de conselheiros no nível mais alto das três camadas. Mas outros representantes do setor empresarial entendem que o número de participantes do segmento deve ser ampliado para cobrir outras áreas sem representação, atualmente", disse ele.  "A gente estaria disposto a discutir isso, desde que houvesse ampliação também, de forma paritária, dos representantes da academia e do terceiro setor", disse ele.

Na verdade, a paridade sequer aparece no documento que apresenta os consensos no setor empresarial, que deixou de apontar as divergências de opinião entre os conselheiros do próprio setor.  Quais? O SindiTelebrasil, por exemplo, encaminhou a sugestão de ampliação das cadeiras dos provedores de infraestrutura durante a consulta pública.  Outros conselheiros entendem que, se for para mexer na composição atual, é preciso dar o mesmo peso para o setor usuário, o de provimento de conexão e o de provimento de aplicação, que são os três atores do ecossistema da Internet cobertos pelo Marco Civil da Internet.

Infelizmente, nenhum dos representantes do setor empresarial  aceitou dar entrevistas a respeito do processo. Em um mundo onde a importância da Internet para a economia digital só faz crescer, essa postura é sintomática.

Vale ressaltar que a revisão do modelo proposta pelo governo nasceu justamente da pressão de parte do setor de infraestrutura para aumentar o número de participantes, que assim ganharia mais peso na votação de resoluções de difícil consenso.

"O que tem acontecido é que toda matéria em que não há consenso, o governo, nessa administração, tem colocado em votação. Então…", comenta Flávia Lefrève.

"É a paridade que vai garantir que as discussões se tornem menos polarizadas. Por exemplo, agora, com todo esse debate em torno da neutralidade de rede, que foi quebrada nos Estados Unidos, já vemos alguns setores começando a se movimentar, questionando o que nós mesmos aprovamos tempos atrás, durante dos debates do Marco Civil. Nesse momento em que o Marco Civil também atribui ao CGI um papel institucional que ele nunca teve, quantos mais interesses desequilibrados  existirem dentro do CGI, mais enviesada vai acabar sendo a posição do comitê, agora fortalecida pelo Marco Civil", diz José Luiz.

Cruzem os dedos, senhores. Foi do governo a primeira palavra em todo esse processo e será dele também a última.

"Minha expectativa é a de que a sociedade seja ouvida. Que os pontos de consenso sejam acatados pelo governo e traduzidos em uma proposta de modelo de governança bem próxima do que a sociedade quer", comenta ele.

Na opinião de José Luiz, o processo de consulta e audiência pública foi muito rico. "Foram feitas muitas contribuições operacionais que a gente vai poder debater, implementar, deliberar daqui para frente, especialmente sobre a atuação do CGI, do NIC.br, sobre transparência. Temos material para discutir e fazer muita coisa útil", comenta.

Mas, de fato, paira no ar uma grande dúvida sobre como as contribuições serão recebidas pelo governo, e até se serão aproveitadas. "A opacidade do processo, do lado do governo, infelizmente é grande", afirma José Luiz.

Apesar dos muitos questionamentos e pedidos para que, na última reunião do dia 15 de dezembro, quando os documentos enviados ao MCTIC foram aprovados, o coordenador do CGI e os poucos representantes do governo comentassem os próximos passos para a elaboração do decreto,  eles se recusaram a fazê-lo. Alegaram não ter autonomia e autoridade para se manifestar a respeito, por questões hierárquicas. "Ponderei que ao menos podiam explicitar a posição do governo, para que todos os membros do CGI a conhecessem. Seria razoável nesse processo multilateral. Mas não houve qualquer manifestação deles sobre o que o governo pensa, ou vem discutindo, ou pretende propor. A gente está, oficialmente, sem saber", comentou José Luiz.

Não sei quanto a vocês, mas já que o próprio governo quer um CGI mais transparente, eu gostaria muito de ler a ata dessa reunião do dia 15 de dezembro.

Também torço para que as contribuições sejam consideradas. Seria uma forma de afastar por completo as suspeitas de que o Decreto já estava pronto e de que todo o processo de consulta pública foi apenas para cumprir o ritual de praxe.

A expectativa geral é o de que o decreto saia nos próximos dias, já que havia um compromisso do governo de  apresentar a Estratégia Brasileira para a Transformação Digital até o fim deste ano.

Se o decreto apontar para algo muito diferente dos pontos em comum acordados no relatório encaminhado ao MCTIC, a academia e o terceiro setor prometem fazer barulho.

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Em tempo: Realizada de 11 de setembro a 19 de novembro, a consulta pública do CGI.br recebeu mais de 790 contribuições, entre aquelas submetidas por meio de plataforma on-line e as apresentadas durante a audiência pública no VII Fórum da Internet no Brasil, que aconteceu no Rio de Janeiro no dia 17 de novembro. Os relatórios que sistematizam as contribuições recebidas estão disponíveis na íntegra, assim como os documentos de consenso dos setores da sociedade civil do CGI.br: consulta.cgi.br/docs/reports.

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A proposta das teles para composição do CGI.br , rejeitada pela maioria dos conselheiros,  está aí embaixo. Note que os interesses do primeiro grupo são os mesmos. Já na composição dos demais, há vários conflitos de interesse dentro dos mesmos grupos.

Grupo 01
• Setor empresarial de Infraestrutura e equipamentos: 4 cadeiras ocupadas por representantes desse setor divididos entre:
Provedores de grande porte de acesso à Internet Fixa ou Móvel;
Provedores de Acesso à Internet via Satélite;
Provedores de pequeno porte (até 50.000 acessos) de acesso à Internet Fixa ou Móvel;
Provedores de Equipamentos da Indústria de EletroEletrônica

Grupo 02
• Setor empresarial de conteúdo e serviços na Internet:
1 cadeira que deve ser ocupada por representantes de empresas que produzem e proveem conteúdo na Internet;
1 cadeira que deve ser ocupada por representante de empresas que prestem ou desenvolvam serviços suportados primariamente pela Internet.
1 cadeira que deve ser ocupada por representante de empresas que pertencem originalmente à setores tradicionais da economia que estão em processo de inclusão de partes de seus negócios na Internet, seja pela evolução da mesma seja por novas tecnologias como IoT;
1 cadeira que deve ser ocupada por provedores de bens de informática e software.

Grupo 03
• Usuários e Cidadãos: Este grupo deve ser representado por representantes dos usuários
e cidadãos em geral, divididos entre:
Usuários: Um representante de entidade do terceiro setor que represente os interesses dos usuários de serviços da internet;
Direitos Civis: Um representante de entidades representantes dos interesses dos grupos de proteção dos direitos fundamentais e dos direitos do consumidor;
Educação: Um representante de entidade que represente os interesses da educação no Brasil;
Telecomunicações: um representante de entidade do terceiro setor que atue diretamente em relação a temas que envolvam telecomunicações.

Grupo 04
Comunidade acadêmica, técnica e científica: Grupo com atividade consultiva, sem direito a voto, representado por 4 cadeiras que representem a comunidade de técnicos e cientistas envolvidos com a Internet:
Notório saber: Pessoa, designada pelo Governo Federal, com notório saber técnico sobre a Internet.

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Já o modelo proposto pela Abranet é o seguinte:

Essa estrutura segue uma lógica de pirâmide, com as seguintes divisões:

1) Camada da base ("setores") – os setores envolvidos com a governança da Internet no Brasil compõem-se de entidades ou pessoas que tomam parte nas discussões e processos decisórios relacionados ao conjunto de atividades previstas no mandato do CGI. Cada setor será composto por diversas comunidades constituintes específicas, que terão "membros associados" segundo regras específicas definidas no âmbito dos processos de cada setor. As comunidades constituintes dos diversos setores manterão canais permanentes para o diálogo entre seus membros associados e serão responsáveis por identificar assuntos de interesse setorial, pautar a atuação das respectivas instâncias superiores e esboçar (individual ou coletivamente) propostas de encaminhamento para a apreciação das mesmas.

2) Camada intermediária – Conselhos Setoriais, um para cada um dos quatro setores envolvidos com a governança da Internet no Brasil. O número de integrantes de cada Conselho (sugere-se um mínimo de 12 e um máximo de 15 por Conselho), bem como as regras de representação e elegibilidade serão definidos a partir das deliberações das respectivas comunidades constituintes. Cada setor definirá as questões relativas à representatividade de suas comunidades respectivas. Os Conselhos Setoriais serão responsáveis por supervisionar e coordenar o trabalho das respectivas comunidades constituintes, funcionando como instâncias deliberativas relativas aos processos conduzidos na instância anterior. É no nível dos Conselhos Setoriais que serão discutidas e aprovadas as posições dos setores em relação às políticas a serem estabelecidas pelo CGI.br.

3) Camada superior – o Conselho Diretor do CGI.br contará com um número definido de representantes de cada um dos setores constituintes (sugere-se 5 representantes por setor, num total de 20, com uma cadeira reservada para o CEO do NIC.br), em pé de igualdade, que serão eleitos em processos estabelecidos no âmbito de cada um dos Conselhos Setoriais, de acordo com as regras definidas pelas comunidades constituintes respectivas. Cabe ao Conselho Diretor do CGI.br supervisionar e coordenar o funcionamento de todo o arcabouço do Comitê, sendo a instância decisória responsável por adotar, referendar e validar as políticas e encaminhamentos definidos individual e/ou coletivamente pelas instâncias setoriais mencionadas acima.

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.