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Cristina de Luca

Até o Papa entra na luta por uma maior conscientização contra as fake news

Cristina De Luca

24/01/2018 22h46

Você é católico? Frequenta a igreja? Prepare-se para ouvir muito sermão sobre fake news.

Em 13 de maio de 2018 será comemorado o Dia Mundial das Comunicações Sociais – data estabelecida pelo Concílio Vaticano II ("Inter Mirifica", em 1963). Como em todos os anos, desde então, o Papa escolhe um tema relacionado à área, para promover reflexão e, muitas vezes, conscientização. As redes sociais, por exemplo, já foram objeto de mensagens de Bento XVI, em 2013 e do próprio Papa Francisco, em 2014. Ambos preocupados em alertar os fiéis para o uso responsável das mesmas, como locais de evangelização e comunhão, respectivamente. Este ano, o tema escolhido pelo Papa Francisco foi "A verdade vos tornará livres" (Jo 8, 32)- Notícias falsas e jornalismo de paz".

Em um período no qual as próprias redes sociais e instituições política e sociais têm debatido e se esforçado para combater o fenômeno das fake news, a igreja católica também quer oferecer uma contribuição, propondo uma reflexão sobre as causas, as lógicas e as consequências da desinformação na mídia,  auxiliando na promoção de um jornalismo profissional que busque sempre a verdade e promova a compreensão entre as pessoas.

Na mensagem divulgada hoje, 24/1, dia em que a Igreja recorda a memória de São Francisco de Sales, padroeiro dos jornalistas, o Papa Francisco diz que "as notícias falsas são um sinal de atitudes intolerantes e hipersensíveis, que levam apenas à propagação de arrogância e ódio". E faz um apelo para que se "redescubra a dignidade do jornalismo".

Vale ler.

O texto começa apontando o que há de falso nas fakes news.

"A expressão fake news é objeto de discussão e debate. Geralmente diz respeito à desinformação transmitida on-line ou nos mass-media tradicionais. Assim, a referida expressão alude a informações infundadas, baseadas em dados inexistentes ou distorcidos, tendentes a enganar e até manipular o destinatário. A sua divulgação pode visar objetivos prefixados, influenciar opções políticas e favorecer lucros econômicos.

A eficácia das fake news fica-se a dever, em primeiro lugar, à sua natureza mimética, ou seja, à capacidade de se apresentar como plausíveis. Falsas mas verossímeis, tais notícias são capciosas, no sentido que se mostram hábeis a capturar a atenção dos destinatários, apoiando-se sobre estereótipos e preconceitos generalizados no seio dum certo tecido social, explorando emoções imediatas e fáceis de suscitar como a ansiedade, o desprezo, a ira e a frustração. A sua difusão pode contar com um uso manipulador das redes sociais e das lógicas subjacentes ao seu funcionamento: assim os conteúdos, embora desprovidos de fundamento, ganham tal visibilidade que os próprios desmentidos categorizados dificilmente conseguem circunscrever os seus danos.

A dificuldade em desvendar e erradicar as fake news é devida também ao facto de as pessoas interagirem muitas vezes dentro de ambientes digitais homogêneos e impermeáveis a perspectivas e opiniões divergentes. Esta lógica da desinformação tem êxito, porque, em vez de haver um confronto sadio com outras fontes de informação (que poderia colocar positivamente em discussão os preconceitos e abrir para um diálogo construtivo), corre-se o risco de se tornar atores involuntários na difusão de opiniões tendenciosas e infundadas. O drama da desinformação é o descrédito do outro, a sua representação como inimigo, chegando-se a uma demonização que pode fomentar conflitos. Deste modo, as notícias falsas revelam a presença de atitudes simultaneamente intolerantes e hipersensíveis, cujo único resultado é o risco de se dilatar a arrogância e o ódio. É a isto que leva, em última análise, a falsidade."

Na sequência, tenta ensinar como reconhecê-las.

"Nenhum de nós se pode eximir da responsabilidade de contrastar estas falsidades. Não é tarefa fácil, porque a desinformação se baseia muitas vezes sobre discursos variados, deliberadamente evasivos e enganadores, valendo-se por vezes de mecanismos refinados. Por isso, são louváveis as iniciativas educativas que permitem apreender como ler e avaliar o contexto comunicativo, ensinando a não ser divulgadores inconscientes de desinformação, mas atores do seu desvendamento. Igualmente louváveis são as iniciativas institucionais e jurídicas empenhadas na definição de normativas que visam circunscrever o fenômeno, e ainda iniciativas, como as empreendidas pelas tech e media company, idôneas para definir novos critérios capazes de verificar as identidades pessoais que se escondem por detrás de milhões de perfis digitais.

Mas a prevenção e identificação dos mecanismos da desinformação requerem também um discernimento profundo e cuidadoso. Com efeito, é preciso desmascarar uma lógica, que se poderia definir como a «lógica da serpente», capaz de se camuflar e morder em qualquer lugar."

Por fim,  compara o processo de produção das notícias falsos ao da estratégia usada pela serpente para manipular Eva no Jardim do Éden. E completa:

(…)"As fake news tornam-se frequentemente virais, ou seja, propagam-se com grande rapidez e de forma dificilmente controlável, não tanto pela lógica de partilha que caracteriza os meios de comunicação social como sobretudo pelo fascínio que detêm sobre a avidez insaciável que facilmente se acende no ser humano. As próprias motivações econômicas e oportunistas da desinformação têm a sua raiz na sede de poder, ter e gozar, que, em última instância, nos torna vítimas de um embuste muito mais trágico do que cada uma das suas manifestações: o embuste do mal, que se move de falsidade em falsidade para nos roubar a liberdade do coração. Por isso mesmo, educar para a verdade significa ensinar a discernir, a avaliar e ponderar os desejos e as inclinações que se movem dentro de nós, para não nos encontrarmos despojados do bem «mordendo a isca» em cada tentação."

A tentativa do Papa é, claramente ,dar uma dimensão moral para o fenômeno. E, no fim,  uma força para a mídia tradicional, tão desacreditada hoje em dia.

"O melhor antídoto contra as falsidades não são as estratégias, mas as pessoas: pessoas que, livres da ambição, estão prontas a ouvir e, através da fadiga dum diálogo sincero, deixam emergir a verdade; pessoas que, atraídas pelo bem, se mostram responsáveis no uso da linguagem. Se a via de saída da difusão da desinformação é a responsabilidade, particularmente envolvido está quem, por profissão, é obrigado a ser responsável ao informar, ou seja, o jornalista, guardião das notícias. No mundo atual, ele não desempenha apenas uma profissão, mas uma verdadeira e própria missão. No meio do frenesi das notícias e na voragem dos scoop, tem o dever de lembrar que, no centro da notícia, não estão a velocidade em comunicá-la nem o impacto sobre a audiência mas as pessoas. Informar é formar, é lidar com a vida das pessoas. Por isso, a precisão das fontes e a custódia da comunicação são verdadeiros e próprios processos de desenvolvimento do bem, que geram confiança e abrem vias de comunhão e de paz."

(…) "Penso em um jornalismo sem fingimentos, hostil às falsidades, a slogans sensacionais e a declarações bombásticas; um jornalismo feito por pessoas para as pessoas e considerado como serviço a todas as pessoas, especialmente àquelas – e no mundo, são a maioria – que não têm voz; um jornalismo que não se limite a queimar notícias, mas se comprometa na busca das causas reais dos conflitos, para favorecer a sua compreensão das raízes e a sua superação através do aviamento de processos virtuosos."

Será que conseguimos?

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.