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Cristina de Luca

Definição de fake news está longe de ser óbvia

Cristina De Luca

05/03/2018 08h19

A quatro mãos, com Silvia Bassi

Se há algo com o qual todos concordamos é que é preciso encontrar uma forma de reduzir a circulação online de notícias inventadas deliberadamente para manipular as audiências e levá-las ao erro. Falsear a verdade, diriam alguns, como se o conceito de verdade fosse realmente fácil de discernir. Está claro que estamos falando de fake news?

Outro consenso é de que é preciso responsabilizar as plataformas digitais  – mas não apenas elas – pela propagação desenfreada dessas notícias.

Se todos concordam com as duas premissas, então por que tanta gritaria em torno dos muitos projetos de lei em tramitação no Congresso criados especificamente para criminalizar fake news?

Porque uma legislação específica sobre qualquer tema precisa, necessariamente, ter clareza na definição do seu alvo. Uma definição jurídica, capaz de identificar de forma inequívoca o problema, de um jeito que não permita seu uso distorcido por pessoas mal-intencionadas.

E esse infelizmente não é o caso das propostas de lei que circulam atualmente no nosso Congresso. Nenhuma delas consegue chegar ao cerne do problema. A legislação ideal contra fake news deveria ser precisa na definição do que fake news é, e certeira nos instrumentos para extinguir sua propagação e efeitos.

Pense em fake news como um vírus. Para impedir uma epidemia, é preciso identificar o vírus corretamente para distribuir a vacina certa.

O que afinal são fake news?
Até aqui, todos os especialistas que já se debruçaram sobre essa tarefa chegaram à mesma conclusão: as fake news são mais do que simplesmente notícias falsas ou erradas. São conteúdos noticiosos falsos ou errados feitos com a intenção de causar dano a alguém/algo, criar uma percepção equivocada, ou mudar um pensamento coletivo. E produzidos para ser viralizados de forma a ampliar ao máximo seu impacto em uma audiência específica.

O problema é que não existe apenas um tipo de fake news.

Tanto é assim que, em janeiro desse ano, a Comissão Europeia reuniu um grupo de especialistas de alto nível para discutir a questão das fakes news e deu a eles, como missão inicial, a tarefa de  elaborar uma definição concreta. Ela servirá de base para a apresentação de um documento formal da Comissão Europeia, não legislativo, no segundo trimestre deste ano. Só então os trabalhos sobre uma legislação específica começarão.

Basta dar duas googladas sobre o termo fake news para achar dezenas de definições e ter certeza de que o trabalho deles não será fácil.

Nem os dicionários concordam sobre como definir ou tratar o assunto. Enquanto o dicionário Merriam-Webster diz que não vai incluir o verbete por ser muito óbvio (a junção da palavra news, notícia, com fake, falso), o Collins English Dictionary não só criou o verbete como o escolheu para entrar na lista de Palavras do Ano de 2017.

Para o Collins, fake news é  "informação falsa, geralmente sensacionalista, que se espalha disfarçada de notícia jornalística". Já o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tem certeza de que fake news são todas as notícias ou reportagens de jornais, revistas ou redes de TV norte-americanas que criticam ou contestam sua administração.

Trump é um bom exemplo de por que é preciso ser cirúrgico na definição quando se trata da lei, ou corre-se o risco de abrir o flanco para qualquer político ou desafeto chamar notícia real de falsa e pedir para tirar do ar por contrariar seus interesses.

Quem aborda fake news com abrangência e precisão é a jornalista e pesquisadora Claire Wardle, atualmente diretora executiva do projeto First Draft, mantido pelo Centro Shorenstein de Mídia, Política e Políticas Públicas, da Escola de Governo John F. Kennedy, da Universidade de Harvard, que estuda métodos científicos para combater a desinformação e os erros de informação, intencionais ou não, na internet.

O First Draft adota uma abordagem pragmática quando se trata de mapear o que são fake news e orientar as audiências sobre como identificá-las e combatê-las. Produz um guia e até um curso online para quem quer levar a sério o tema. E não é de agora.

Em um texto de fevereiro de 2017 – um ano atrás, portanto – Claire alertava para o fato de que fake news na verdade era um ecossistema de desinformação. Para entendê-lo e combatê-lo seria preciso classificar o conteúdo falso em diferentes categorias (chegou a 7), identificar as motivações dos criadores do conteúdo falso, e mapear suas formas de disseminação.

O artigo tem o título sugestivo de "Fake News. It's complicated".  E parte do pressuposto de que o termo fake (falso) não é suficiente para descrever a complexidade dos diferentes tipos de desinformação e má informação circulantes.

Os sete tipos de desinformação ou má informação, segundo Claire, são:

1 – Sátira ou paródia – sem intenção de causar dano, mas com potencial para enganar.

2 – Conteúdo enganoso – uso enganoso de informações para enquadrar um problema ou um indivíduo.

3 – Conteúdo falso – quando o conteúdo genuíno é "batizado" com falsas informações contextuais.

4  – Conteúdo impostor – quando informações falsas são atribuídas a fontes genuínas.

5  – Conteúdo manipulado – quando informações ou imagens verdadeira são manipuladas para enganar, por exemplo, uma foto "photoshopada".

6 – Conteúdo fabricado – quando o conteúdo é 100% falso, projetado para enganar e prejudicar.

7 – Associação falsa – quando manchetes, imagens ou legendas não são condizentes com o conteúdo.

Se você se lembrou de casos recentes ou nem tanto do jornalismo tradicional ao ler a lista da diretora da First Draft, percebeu que o buraco é bem mais embaixo. Nem só de falsários verdadeiros vive o mundo das fake news.

Bom, e aí, o que fazer?

Se voltarmos para a analogia entre vírus e fake news, podemos dizer que os diferentes tipos de desinformação são comparáveis ao vírus da gripe comum, às cepas da Influenza e ao simples resfriado.  Ninguém toma vacina para combater resfriado, mas todo mundo sabe o que é e o que fazer para tratar os sintomas. Já o Influenza, se não for combatido com remédio forte e cerceado com vacinação em massa, mata muita gente. E muita gente já morreu por não saber identificar e tratar adequadamente a doença.

Uma lei que se disponha a combater e criminalizar fake news precisa levar em conta todas essas variantes. Ela não pode fazer como o Webster e assumir que fake news é uma coisa óbvia; não pode deixar margem de dúvida que permita seu uso oportunista contra os veículos de mídia legítimos; e não pode usar o caso mais grave como parâmetro para tratar todos os demais com o mesmo remédio. Os feitos colaterais seriam danosos para a liberdade de expressão.

Em nossa humilde opinião, o problema é premente, mas não pode ser resolvido apressadamente. Até porque fake news não nasceu com a Internet. As mídias digitais só a transformaram em um grande pesadelo, pelo seu poder de amplificação e facilidade de dar asas às famosas teorias da conspiração.

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A propósito, qual é mesmo a sua definição de fake news? Compartilha aí com a gente.

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.