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Cristina de Luca

Consequências do escândalo do Facebook para o Marketing são imprevisíveis

Cristina De Luca

30/03/2018 12h01

A única coisa que podemos ter certeza é de que podemos começar a nos preparar para a imposição de maiores restrições à captura, uso e compartilhamento de dados de usuários em plataformas digitais. Será, inevitavelmente, a consequência imediata não só do escândalo envolvendo o uso indevido de dados do Facebook pela Cambridge Analytica, como também da entrada em vigor do Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (o GDPR).

Podemos esperar também uma maior pressão em cima dos profissionais de marketing para que sejam melhores no uso dos dados que alimentam suas estratégias digitais. Eles terão que ser mais competentes, para garantir performance e mais éticos, para angariar confiança.

O próprio Facebook começou, este semana, a restringir o uso de dados de terceiros que ajudam a aumentar o valor das análises.

Todo profissional de marketing sabe que os dados primários, de propriedade da marca, infelizmente não fornecem todas as informações necessárias sobre os consumidores alvo. Especialmente sobre aqueles com os quais as marcas ainda não se relacionam diretamente. Para superar esse desafio, as marcas adquiriram o hábito de enriquecer seus first-party data cruzando-os com as bases de outras marcas não diretamente concorrentes, que se relacionam vários segmentos consumidores.

Para alguns analistas, como Dave Morgan, CEO e fundador da Simulmedia, ao deixar de oferecer aos anunciantes a opção de segmentação com base no acesso a dados coletados por terceiros, como a Acxiom e a Experian (Serasa, aqui no Brasil), o Facebook aumentará significativamente o custo do acesso aos third-party data. Pior. Aumentará a desconfiança dos reguladores em relação à atuação dos fornecedores de second e third-party data.

De fato, embora tenha surtido algum efeito no sentido de estancar a queda das ações da rede social, como bem mostra o gráfico abaixo, a decisão do Facebook de encerrar suas parcerias com vários grandes corretores de dados chamou ainda mais a atenção das autoridades e dos consumidores para práticas corriqueiras, legítimas, mas que há muito tempo, convenhamos, conviviam com abusos descabidos e escamoteados, agora parcialmente revelados.

Dados de uma pesquisa da iQuanti, realizada entre os dias 20 e 27 de março, mostram que as pessoas estão pensando em aprender mais sobre maneiras de proteger sua privacidade nas mídias sociais – especificamente no Facebook.  A pesquisa  também registrou um aumento significativo da preocupação com o abuso no uso dos dados pessoais. No final de março, o volume de buscas a partir de palavras-chave como "cambridge analytica" foi de 18.1 mil ocorrências; "Excluir conta do facebook", 110 mil; e "como excluir conta do Facebook", 74 mil. Bem mais do que o interesse demonstrado pelos desdobramentos políticos. "Cambridge analytica trump" teve apenas 1,6 mil ocorrências e "cambridge analytica russia", 390.

Certamente veremos novas investigações, audiências nos Congressos nacionais e processos civis abordando a coleta e o uso de dados nas plataformas digitais, semanalmente, pelo resto do ano.

Mas, daí em diante, as incertezas aumentam.

Uma das questões em aberto é: as indústrias de mídia, propaganda e marketing se unirão rápido o suficiente para começar a conversar com os consumidores sobre privacidade e como seus dados estão sendo usados, ​​antes que as restrições legais posam aumentar o risco de inviabilizar o modelo?

Há quem acredite que sim. E que os perdedores serão apenas os consumidores/usuários. Duplamente, uma vez que restrições mais duras à combinação dos first, second e third-party data podem impedi-los de ter melhores serviços, e que o clamor por mais transparência sobre o uso que as empresas fazem dos dados coletados pode acabar não avançando tanto. Afinal, "como é sabido há séculos, as regulamentações beneficiam largamente os operadores de mercado, não os usuários ou os novos entrantes", opina Morgan.

Tenho cá as minha dúvidas. E o GDPR está aí mesmo para provar que é possível ser efetivo em relação à transparência e ao ordenamento no uso de dados, pensando em resguardar os direitos dos cidadãos/consumidores, sob pena de cobrança de pesadas multas no caso de seu descumprimento.

No centro do GDPR está uma mudança de poder das empresas e dos consumidores em relação aos dados coletados, refinados e transformados em inteligência de negócio. Os consumidores terão tanto conhecimento quanto controle sobre os dados que as organizações possuem sobre eles, porque elas serão obrigadas a informá-los a respeito e a atender prontamente aos pedidos de exclusão ou suspensão de uso.

James Allum, diretor administrativo da Kitewheel, uma das empresas líderes em orquestração da jornada do consumidor, acredita que o GDPR forçará os profissionais de marketing a fazerem duas coisas importantes, que já deveriam ter feito antes: entregar mais valor aos consumidores e unificar o armazenamento e a coleta de dados. Garantindo, portanto, que ganhem com tudo isso.

Vale lembrar que a teoria da aplicação dos dados pelos usuários feita pelos profissionais de marketing (e cada vez mais aprendizado de máquina e inteligência artificial) é que quanto mais eles sabem sobre nós, mais relevantes serão suas mensagens e ofertas.

"Temos falado sobre a melhoria do estado de nossa indústria há algum tempo, e agora é hora de caminhar", diz Allum em um artigo recente para o Media Insider.

"Por meio da transparência forçada, os profissionais de marketing não apenas terão que ser melhores, como também obterão melhores resultados, graças à maior personalização e ao valor adicional fornecido aos consumidores", diz ele.

Espero, sinceramente, que não erre o prognóstico. Até porque, a Internet das Coisas está aí. Mais e mais dados, muito mais reveladores do que as postagens no Facebook, serão coletados sobre todos os nós. O que parecem ser aplicativos e aparelhos úteis, inofensivos, já estão gravando toneladas de detalhes íntimos a nosso respeito que, de uma maneira ou de outra, serão implantados nos esforços de marketing de alguém.

O Google, por exemplo, já armazena nossa localização (se ativada) toda vez que você ligamos nossos smartphones Android, e nos permite ver uma linha do tempo dos nossos deslocamentos e dos locais onde estivemos desde o primeiro dia em que começamos a usar o dispositivo associado à conta Google.

Portanto, em muitos aspectos, estamos apenas no começo da era do marketing digital baseado em dados. E a chave em todo esse ecossistema está na segurança e no respeito às normas de boas práticas no uso das informações dos cidadãos/consumidores.

Outra dúvida recorrente é como se posicionarão as demais plataformas digitais.

Logo depois de o Federal Trade Comission (FTC) ter confirmado que investigará o caso de uso indevido de dados do Facebook, o presidente do Comitê Judiciário do Senado dos EUA, o republicano Chuck Grassley, agendou para o dia 10 de abril uma audiência com Mark Zuckerberg, Sundar Pichai (CEO do Google) e Jack Dorsey (CEO do Twitter), para debater novos padrões de privacidade para a coleta, retenção e disseminação de dados de consumidores para uso comercial. Também será examinado como tais dados podem ser usados de forma indevida ou transferidos de forma imprópria e quais passos as companhias precisarão dar para proteger as informações dos usuários e assegurar mais transparência nesse processo.

Até aqui, o Google já iniciou uma cruzada para tranquilizar anunciantes e manter a confiança dos usuários. "Ouvimos quando vocês dizem que querem transparência, querem segurança, vocês querem proteção contra fraude … Nós ouvimos vocês alto e claro", disse o diretor do Google para assuntos na região da Europa, África e Oriente Médio, dias atrás, em um dos debates da Advertising Week Europe.

Será, ou será só um discurso politicamente correto? Espero que o Google, de fato, aja com lisura, já que "construiu uma máquina de vigilância comercial global que rivaliza com o que a NSA [Agência de Segurança Nacional] ou outras agências de inteligência podem reunir para se tornar a principal empresa de publicidade digital global", conforme vem repetindo  Jeff Chester, diretor executivo do Center for Digital Democracy, localizado em Washington.

Há até quem diga que o debate subitamente fervoroso sobre as empresas de tecnologia coletam e lidam com os dados dos usuários pode até questionar os fundamentos da "Web 2.0", da entrega deliberada de dados por todos nós em troca de serviços gratuitos. Não por acaso, o cientista da computação Tim Berners-Lee somou sua voz àquelas que pedem que as grandes empresas de internet  sejam regulamentadas, em uma carta aberta divulgada por ocasião do 29º aniversário da World Wide Web. Portanto, antes doo escândalo envolvendo o Facebook e a Camdridge Analytica estourar.

Na carta, Berners-Lee externa sua preocupação sobre como as essas grandes empresas como Google e Facebook estão lidando com os dados dos usuários. Para ele, seria preciso encontrar um equilíbrio entre os interesses das empresas e dos cidadãos online.

Em entrevista à CNN, logo após o escândalo vir à tona, Mark Zuckerberg resumiu bem a preocupação das gigantes: "Não tenho certeza de que não devemos ser regulados. No geral, a tecnologia é uma tendência cada vez mais importante no mundo. Acho que a questão passa mais por 'qual é a regulação mais apropriada' em vez de se deveria haver regulação", disse o CEO do Facebook.

Que venham os próximos capítulos.

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.