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Cristina de Luca

#Conexão23: Habitantes do Silicon Valley correm com tesouras na mão

Cristina De Luca

02/04/2018 07h05

Por Silvia Bassi

Desde o estouro da crise Cambridge Analytica/Facebook, há duas semanas, uma frase típica do Silicon Valley fica martelando na minha cabeça: "Fail early, fail fast, fail often" (Erre cedo, erre rápido, erre com frequência).

A frase não tem dono, pertence à cultura do Vale, e é frequentemente citada em livros de gestão como um motto a ser adotado pelas empresas que querem criar uma cultura corporativa inovadora. Teoricamente, quanto mais você erra e quanto mais cedo você erra, mais rapidamente vai acertar. Será?

As startups e empresas do Vale do Silício usam e abusam de frases de efeito e slogans bonitinhos para empolgar funcionários e fazer seu marketing de ruptura. Seus líderes são inteligentes, hiperativos e estimulam os colaboradores a acelerar na direção do acerto sem se importar com os erros enquanto tentam. O Silicon Valley tem pressa. E justifica sua pressa com outra frase de efeito adorada pelos norte-americanos: "melhor pedir desculpas que pedir licença" (It's better to ask forgiveness than permission).

Até 2014, o motto interno do Facebook, martelado dia e noite no cérebro dos seus funcionários millenials hipermotivados, era "Move Fast and Break Things" (Corra e quebre coisas). Depois mudou para "Move fast with stable infra". Note, a pressa continua, o que muda é que é melhor programar com uma infraestrutura estável. Se quebrar alguma coisa no caminho, paciência, pede desculpas depois.

Nesses dez anos de vida, o Facebook seguiu à risca todas as frases citadas acima. O site TechCrunch publicou um artigo brilhante sobre a empresa e suas práticas apressadas. Nele, listou todas as vezes em que a companhia teve ou de pedir desculpas por algum abuso da plataforma ou mudar alguma prática por ofender direitos básicos de privacidade ou regras comerciais de publicidade. Foram 11 vezes (incluindo o fiasco recente). Praticamente um por ano.

Mas, se tem uma coisa que precisa ficar muito clara dessa história toda é que o Facebook não está sozinho. A Cambridge Analytica, vale repetir, é só a ponta de um imenso iceberg. É uma de uma série de bolhas éticas que começam a explodir. E a culpa não é só do Facebook, a culpa é também do Vale do Silício, de Wall Street, e das empresas de venture capital.


O Silicon Valley tem pressa, e seus habitantes se comportam como crianças correndo com tesouras (ou outros objetos cortantes) na mão, sem se preocupar com as consequências. E são estimulados pelos investidores, pelos membros dos conselhos administrativos, pelos mentores, pelos analistas financeiros e por seus fundadores a acelerar para crescer a base de usuários, aumentar os downloads de apps, dobrar a receita e ampliar o market share porque é preciso aumentar o valuation, fazer o IPO e subir o preço das ações.

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A "vida em modo beta" que o Vale do Silício inteiro tenta vender como cool, inovadora e disruptiva pode gerar, e vem gerando, práticas corporativas bem irresponsáveis. Fazer uma empresa totalmente digital ignorando as regras que protegem os indivíduos e sua privacidade não é fazer o bem. É evil. E as empresas digitais não podem achar que tem direito a passar ao largo de regras de governança e práticas éticas que regem as empresas tradicionais há décadas e protegem a privacidade dos cidadãos há mais de um século.

Mas muitas delas ainda acham. Elas acreditam, ingenuamente talvez, que são portadoras de um Santo Graal, de um passe que as coloca em outro patamar acima da humanidade que não sabe programar. E que estão forjando uma nova sociedade muito melhor. E que podem fazer o que for necessário para chegar ali. Quer exemplos?

Travis Kalanick, o ex-CEO do Uber, costumava dizer, sobre seu modo bruto de fazer negócios, que "Fear is the disease. Hustle is the antidote" (o medo é a doença. O empurrão é o antídoto). Foi endeusado, até perder o emprego no ano passado.

Em 2011, durante um debate sobre as práticas do Facebook, Big Data e Privacidade de dados na conferência Web 2.0, Sean Parker, criador do Napster e mentor de Mark Zuckerberg, argumentava que "existe o horripilante ruim e o horripilante bom", e completava a defesa do modelo Facebook da época com a pérola "o horripilante de hoje é a necessidade de amanhã" ("Today's creepy is tomorrow's necessity"). Para ser justa com o Facebook, muita coisa mudou desde então. Mas deu no que deu.

Na quinta-feira passada, o BuzzFeed publicou um memorando interno do VP do Facebook, Andrew Bosworth, enviado aos funcionários em junho de 2016 sobre a cultura de crescer a base de usuários "a qualquer custo". O memorando gerou mais polêmica e levou Mark Zuckerberg a liberar correndo um comentário oficial para o site dizendo que o Facebook "nunca acreditou que o fim justifica os meios". Bosworth apagou o memorando original de 2016 e publicou um novo memorando lamentando o vazamento do post e explicando que ele teria sido "uma chamada para as pessoas da empresa se envolverem em um debate sobre como nos conduzimos em meio às constantes mudanças dos costumes da comunidade online".

O memorando de Bosworth tocava em pontos sensíveis da cultura da companhia. Mas tem um trecho do texto que reflete bem o que discutimos aqui: "Não é alguma coisa que fazemos para nós mesmos. Ou pelo valor das nossas ações (ha!). É literalmente o que nós fazemos. Nós conectamos pessoas. Ponto. E é isso que justifica todo o trabalho que fazemos no crescimento. Todas as práticas questionáveis de importação de contatos. Toda a linguagem subliminar que faz as pessoas serem buscáveis pelos amigos. Todo o trabalho que fazemos para trazer mais comunicação para dentro. O trabalho que vamos ter de fazer na China algum dia. Tudo isso".

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Pois é, em 2016, quando Bosworth escreveu o memo, "o trabalho que vamos ter de fazer na China algum dia" referia-se à possibilidade da companhia estar planejando voltar à China oferecendo ao governo chinês ferramenta de software que permitisse censurar os post da comunidade. A história foi discutida em reportagem do The New York Times , alimentada por vazamentos de funcionários da rede social. O Facebook nunca confirmou a ferramenta e não voltou, ainda, para a China, mas as dezenas de reportagens da época sinalizavam que a ânsia de aumentar a presença global podia ser muito tentadora. E a tentação talvez tenha diminuído por causa das denúncias.

É interessante ver a reação dos funcionários do Facebook ao vazamento do memorando de Bosworth esta semana. O The Verge publicou vários dos comentários (estavam em 3 mil quando o artigo foi publicado no dia 30/03) e havia uma mescla de sentimentos contra e a favor de Bosworth e da sua decisão de apagar o post original. Mas havia também um sentimento corporativista interessante, com sugestões de acabar com leakers (vazamentos por funcionários) por meio de novas práticas de entrevista para contratação. E de considerar inapropriado que o mundo visse as entranhas da empresa e suas discussões sobre o futuro da comunidade global. É a prova de que o que discutimos de fato existe.

Há um ruído no mercado de que a mídia em geral está se aproveitando da Cambridge Analytica para malhar o Facebook (e também o Google) como vingança por sua própria crise. Pode ser, mas são artigos como os que foram publicados sobre o escândalo recente e os que têm sido publicados até hoje denunciando fake news e outros desvios digitais que evitam, na minha opinião, que o futuro seja destruído para sempre com esse comportamento disruptivo dos darlings do Silicon Valley. Que é reforçado pela condescendência dos investidores em busca dos resultados em Wall Street.

É preciso discutir tudo. O mainstream agora é digital e tudo de bom do mainstream analógico anterior precisa ser preservado, ou todos os livros de ficção científica sobre futuros distópicos vão virar realidade. No momento em que estamos acelerando para um universo com Machine Learning, robótica e Inteligência Artificial cada vez mais presentes, a prática de fazer agora e pedir desculpas depois não vai dar certo. Não vai mesmo. Porque o mal existe e está usando a tecnologia para se dar bem.

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.