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Cristina de Luca

Grupo da UIT define recomendações para OTTs como WhatsApp e Netflix

Cristina De Luca

15/04/2018 11h53

O grupo da União Internacional de Telecomunicações que define o impacto econômico de OTTs (o SG3) aprovou na última semana, durante o Simpósio de Reguladores, algumas recomendações sobre serviços prestados na camada de aplicação da internet que competem diretamente com os tradicionais serviços de telecomunicações. A informação foi publicada no Brasil pelo site Teletime e ainda não consta das páginas oficiais do SG3 no site da UIT.

A UIT é uma agência especializada da ONU para tratar de aspectos da infraestrutura de telecomunicações, como distribuição de radiofrequências e gerenciamento de recursos de numeração para telefonia. Em um esforço de ampliação de suas atribuições, a UIT tem procurado cada vez mais impor seu mandato aos padrões e políticas relacionados à Internet. A recomendação para as OTTs surge a partir deste esforço, com debates acirrados nos últimos 3 anos.

De número D.262, segundo o Teletime, a recomendação aprovada está incluída entre aquelas que definem princípios tarifários para serviços de telecomunicações, embora, já na definição do serviço, o trate como "aplicações acessadas e entregues sobre a rede pública de Internet e que sejam substitutas técnico/funcionais de serviços tradicionais de telecomunicações".

E é aí reside o X da questão. Embora os produtos finais possam parecer semelhantes, os serviços de telecomunicações e os OTTs operam por meio de diferentes tecnologias e, portanto, existem em diferentes ambientes de mercado. Têm diferentes estruturas de preços, demandas de recursos e modelos de negócio (lucro).

O texto aprovado, reproduzido pelo Teletime, se debruça sobre algumas destas questões. Recomenda que, à guisa de promover uma competição justa, e assegurar investimentos e inovação, os governos avaliem bem "os impactos econômicos, políticos e de bem-estar do consumidor das aplicações OTT em todas as áreas críticas afetadas, incluindo suas estruturas regulatórias e incentivos econômicos existentes com relação ao provisionamento e uso de OTTs" e desenvolvam "políticas e/ou arcabouços regulatórios favoráveis para fomentar a concorrência justa entre os operadores de rede e os provedores OTT"; incentivem "a cooperação mútua, na medida do possível, entre OTTs e operadores de redes, com vista a fomentar modelos de negócio inovadores, sustentáveis e viáveis"; e contribuam "com esforços de padronização por meio de organizações globais e regionais de desenvolvimento de padrões, a fim de garantir serviços e aplicações abertos, interoperáveis, portáteis, seguros e acessíveis aos consumidores, em qualquer lugar e a qualquer hora, quando viável".

Vale lembrar também que as OTTs, de acordo com a própria definição da recomendação da UIT, operam na camada de conteúdo da rede: são, portanto, plataformas nas quais os usuários da Internet geram, consomem e trocam informações. Para muitos defensores da liberdades na Internet, essa camada é o que torna a conectividade significativa, o que eleva a Internet de uma rede de redes para um espaço cívico para o desenvolvimento econômico, social, civil e político.

Não podemos esquecer, por exemplo, que apesar das preocupações sobre impacto dos serviços OTTs nos mercados tradicionais de telecomunicações, o acesso a aplicativos de telefonia alternativos como WhatsApp, Skype e Facebook diversificam o acesso dos usuários à informação e fornecem plataformas para a expressão individual. Razão pela qual muitas entidades de defesa da Internet advogam que a UIT pode abordar aspectos da infraestrutura de telecomunicações, mas esse mandato não fornece autoridade para abordar tudo o que opera sobre ela. Especialmente no Brasil, onde a Norma 4 garante à Internet o tratamento de Serviço de Valor Adicionado e não de Serviço de Telecomunicações.

O Artigo 19, ONG internacional nascida em Londres, está entre as entidades da sociedade civil que sustentam que a UIT não tem um mandato para discutir questões de conteúdo online e, portanto, não deve abordar OTTs. Qualquer discussão sobre os aspectos regulatórios ou de política dos OTTs deve ser conduzida pelo interesse público, que deve ser determinado por meio de uma estrutura de direitos humanos. Essas discussões devem ser conduzidas em fóruns abertos e transparentes. Argumenta também que o protecionismo não é um determinante válido para políticas ou regulamentações – especialmente quando a concorrência robusta é crucial para o desenvolvimento de infraestruturas maiores e mais acessíveis.

Mesmo no Brasil, muitas entidades do terceiro setor defendem que as discussões sobre os aspectos políticos e regulatórios das OTTs devem ser cuidadosamente balanceadas para evitar o risco de restringir o livre fluxo de informações, violando a neutralidade da rede e sufocando a inovação.

Por isso, há que se olhar iniciativas como esta com o devido cuidado. E exigir maior transparência (a aprovação da norma já deveria constar das páginas do SG3 no site da UIT.

Até porque, a UIT é, reconhecidamente, um espaço multilateral e altamente politizado que sofre de falta de transparência e abertura. Os seus resultados, incluindo recomendações e normas, são suscetíveis de serem capturados pelos interesses de determinados governos (estados-membro) que podem procurar legitimar os esforços em curso para restringir a liberdade na Internet dentro das suas fronteiras.

É crucial que a sociedade civil participe ativamente das consultas abertas da UIT, não apenas enviando contribuições por escrito, mas apresentando essas posições nas reuniões físicas – seja pessoalmente ou remotamente. Mesmo que a tomada de decisão da UIT permaneça a portas fechadas, a participação robusta da sociedade civil na fase de consulta aberta pode contribuir para os debates.

Afinal de contas, a influência da UIT sobre os serviços OTT traz implicações significativas para o futuro da política pública da Internet e o desenvolvimento de padrões técnicos.

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.