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Cristina de Luca

Como definir verdade quando o debate de convicções se sobrepõe aos fatos?

Cristina De Luca

31/10/2018 08h10

De imediato, faço um alerta aos leitores politizados e ansiosos por tecer opiniões contra ou a favor de qualquer que seja o partido ou ideologia: esse artigo não é sobre política. É sobre dois fenômenos controversos que andam de mãos dadas com a propagação de informações através das redes sociais e mais recentemente, também dos aplicativos de mensagens. E que, por tabela, têm minado a liberdade de imprensa: a pós-verdade e a desinformação.

Para começar é preciso deixar claro que a desinformação não é um fenômeno novo, nem próprio da Internet. A disseminação de notícias imprecisas, manipuladas, erradas ou enganosas sempre existiu. E a complexidade na determinação do que é verdade, em particular no caso das notícias  (que precisam buscar a objetividade na descrição dos acontecimentos, mas não são o próprio acontecimento, e sim uma narrativa ou uma edição deste acontecimento), é enorme.

O que é novo é o uso da desinformação industrialmente fabricada e propagada a partir das plataformas tecnológicas de comunicação interpessoal para, quase sempre, justificar a tal pós-verdade, um neologismo recente para nominar outro fenômeno social antigo: as circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais.

A pós-verdade desconhece que a opinião se constrói a partir da constatação dos fatos. Acontece que estamos assistindo ao distanciamento dos fatos. "Já não debatemos fatos. Debatemos convicções, muitas vezes sem lastro na verdade factual", costuma dizer o jornalista Eugenio Bucci. E isso foi particularmente verdade nas eleições deste ano, embora a pós-verdade não seja apenas uma prática que se desenvolve no campo da política. É feita também, de forma igualmente perigosa e arbitrária, no âmbito da publicidade e no campo da comunicação corporativa.

O valor e a credibilidade dos meios de comunicação convencionais se veem reduzidos diante das opiniões pessoais. Os acontecimentos passam a um segundo plano, enquanto o "como" se conta a história ganha importância e se sobrepõe ao "o quê". Não se trata de saber o que ocorreu, mas de escutar, assistir, ver, ler a versão dos fatos que mais concorda com as convicções de cada um.

Se a pós-verdade consiste na relativização da verdade, qual passa a ser então o papel do jornalismo, tradicionalmente responsável por checar os fatos e construir narrativas baseadas na dita verdade factual, conforme definida na obra "Verdade e Política", da filósofa Hannah Arendt?

Na opinião do jornalista José Antonio Zarzalejos, ex-diretor da ABC e do El Correo, da Espanha, o novo jornalismo deve concentrar-se, de agora em diante, não tanto em contar – isto já o fazem os cidadãos, por conta própria, por meio do enorme cardápio de tecnologias digitais à sua disposição – mas em verificar, de maneira sistemática.

"A única maneira de conceber o jornalismo e a comunicação corporativa consiste em fazer uso da verificação dos dados, das teses dos discursos e da proatividade informativa para detectar as falsidades e destruí-las, destituindo as inverdades de qualquer reputação. Ou seja, o jornalismo, por um lado, e a comunicação deontológica, por outro, devem voltar a resgatar o relato verossímil, conter o sentimentalismo, apaziguar e moldar os piores instintos e proclamar a superioridade da inteligência sobre a visceralidade", diz ele. Em resumo, garantir à sociedade o direito de informações críveis, apuradas com técnica, rigor e ética profissional. E isso só se faz com redações profissionais.

Verificar a credibilidade da fonte, questionar o teor da informação, levantar dúvidas são comportamentos indispensáveis para apurar a veracidade dos fatos. "Perguntar não ofende", já dizia o humorista. A pergunta é uma oportunidade para que o interlocutor exponha a sua versão do fato. Mas diante de presidentes que não lidam bem com críticas, como Donald Trump, soam como estocadas.

"A grandeza da América depende do papel da imprensa livre de falar a verdade aos poderosos", disse o The Globe em seu editorial quando, meses atrás, centenas de jornais dos Estados Unidos dedicaram espaço em suas edições para uma defesa coordenada à liberdade de imprensa e uma crítica ao presidente dos EUA, por dizer que algumas organizações da mídia são inimigas do povo norte-americano."Rotular a imprensa como 'inimiga do povo' é tão antiamericano como perigoso para o pacto cívico que temos compartilhado por mais de dois séculos".

Jornais erram. E muito. Mas daí a dizer que espalham fake news por, de algum modo, publicarem aquilo que o dirigente não gostaria de ver publicado, são outros quinhentos. "O discurso jornalístico é um discurso sem fim. O jornal nunca termina. Não entrega uma verdade acabada. O jornal é uma verdade provisória, precária, de fatos em andamento. Por definição, todo reportagem é um discurso com incompletudes", ouvi de Bucci meses atrás. "A verdade científica também é um processo permanente. Alguém faz uma teses, demonstra, aquilo carece de comprovação empírica… Só as religiões prometem verdades acabadas".

O que nos leva a um dilema que, no mundo inteiro, acompanha o debate em torno da criminalização das fake news: o que é a verdade factual?

O trecho a seguir, retirado de um artigo recente da jornalista Renata Mielli, coordenadora geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação,  aborda esse dilema de forma bastante clara: "A verdade, como algo uno e inquestionável, é derivada do próprio reconhecimento filosófico de que uma verdade pode ser atribuída a algo a partir de diferentes juízos culturais e históricos. Trazendo essa reflexão para o campo jornalístico, atribuir a uma notícia — que por si só já é produto de um processo de seleção e recorte de um fato — a classificação de verdadeiro ou falso é algo ainda mais complexo e delicado, uma vez que o que se está analisando já não é o fato em si, mas uma narrativa de outrem sobre ele."  Existem divergências de interpretações até mesmo entre os diferentes fact-checking!

No mesmo artigo, Renata ressalta que o falso, em contraponto à verdade factual, pode ser fruto de erro de apuração (checagem), erro de edição e portanto não intencional ou pode ser, como apontado em recente documento da Comissão Europeia, "criado, apresentado e divulgado para obter vantagens ou para enganar deliberadamente o público". As duas formas de desinformação podem causar danos à sociedade, mas precisam ser tratadas de forma distinta, afirma ela.

Acontece que, como bem lembra Bucci, a imprensa, quando publica erros _ e, reconheço, ela o faz aos montes _ precisa responder por eles. Alguém vai contestar, até mesmo pelas redes sociais.  Vai tentar corrigi-los. E aí está, precisamente o que diferencia notícia e notícia falsa. A notícia é um relato que se corrige no calor do debate público. As fakes news nunca serão corrigidas por quem as produziu.

Os debates em torno na criminalização das fakes new têm nos alertado de que precisamos, como sociedade, evitar que, a pretexto de combater a desinformação, um tribunal de exceção defina o que é verdade ou mentira, que informação pode ou não circular e onde. Conferir tanto ao Estado quanto ao setor privado a prerrogativa de serem o supremo tribunal da verdade pode levar a um cenário de graves violações civis.

"Um jornal tem um dono. Um jornal tem uma opinião política. Mas um jornal, em uma sociedade democrática, com uma regulação civilizada, avançada e moderna dos meios de comunicação, é um jornal ao lado de outros. Esse jornal, se publicar uma mentira, será contestado por outros. E a sociedade vai debater, porque haverá pluralidade e concorrência", ouvi de Bucci em um papo recente.

Tudo isso me passou pela cabeça, em segundos,  ao ver presidente recém eleito declarar na TV que pretende usar a publicidade oficial para punir aqueles veículos que, na sua opinião, faltam com a verdade factual.

A imprensa não pode ser tendenciosa. Os leitores a punirão, cancelando suas  assinaturas. Da mesma forma, os dirigentes não devem ameaçar a imprensa. Não em sociedades verdadeiramente democráticas.

Tanto nos Estados Unidos, quanto aqui, a rejeição à imprensa foi parte importante das estratégias das campanhas vitoriosas.  Mas, terminada a campanha,  a realidade tem que voltar a encontrar o seu lugar. Ela não pode ser menos importante do que a emoção e a crença pessoal.  A solução para isso é ter uma imprensa de qualidade e livre. E ela só existirá se for estimulada, não censurada ou ameaçada.  A qualidade jornalística, não custa lembrar, só veio como consequência do exercício da liberdade, não o contrário.

Nunca foi tão importante garantir o lugar da imprensa, estímulos para a imprensa, proteção para a imprensa. Proteção para a vida e a segurança do jornalista. Proteção para a saúde dos negócios das empresas jornalísticas. Proteção para as instituições públicas que cuidam de informações para o público e da comunicação pública de uma maneira em geral. Proteção para a verdade nas campanhas informativas de governo.

Assim como o Direito (e as leis), a democracia requer a verdade factual, aquela verdade que se extrai da verificação honesta e do relato fidedigno dos fatos e dos acontecimentos. Ainda que, como pontue Hannah Arendt, ela seja pequena, frágil, efêmera.

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.