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Cristina de Luca

A cultura organizacional devora a transformação digital no café da manhã

Cristina De Luca

08/04/2019 07h47

Não sou a primeira, e provavelmente não serei a última a adaptar a famosa frase do guru da administração moderna, Peter Drucker ("A cultura come a estratégia no café da manhã"), ao abordar o processo de transformação digital, suas falácias e o maior dos entraves ao sucesso: a cultura organizacional. A bem da verdade, poderia começar a escrever este texto mencionando outra frase de Drucker: "O maior perigo em tempos de turbulência não é a turbulência em si; é agir com a lógica de ontem".

Isso ficou muito claro nos depoimentos de Paula Cardoso, CEO do Carrefour eBusiness, Carolina Sevciuc, Diretora de Transformação Digital da Nestlé e Fabio Mota, VP da Raízen, durante o "CI&T Business Impact Summit" 2019, realizado na última quarta-feira, em São Paulo.

Durante sua fala, Mota promoveu uma pequena enquete entre o público presente ao evento. A composição da audiência era majoritariamente de profissionais de TI e de áreas de apoio, com exceção do RH. "Uma pena. RH é super relevante, por que processos de transformação mexem com a cultura da empresa, com os seus pilares. Transformar é trabalhoso. Tortuoso", disse ele.

A transformação digital é, antes de tudo, a transformação de processos tendo como objetivo final atender melhor o cliente. É uma nova forma de pensar o negócio, de se organizar e de trabalhar. Para que funcione, é necessário trazer para a mesma mesa pessoas das áreas de negócio capazes de influenciar o processo de transformação. "E isso não é trivial", ressalta Mota, apesar do discurso estar na ponta da língua de muitos líderes.

É difícil trazer para a mesa novos modelos de funcionamento que soam como contrassenso para toda a organização. O caminho encontrado por Paula Cardoso para superar as resistências naturais foi propor a criação de uma nova unidade de negócio e de uma nova governança, com comitês de trabalho e indicadores que a empresa não olhava antes. Saber mostrar resultados durante o processo de transformação é muito importante, sobretudo para companhias abertas, obrigadas a divulgar resultados trimestrais.

"A decisão de mudar o negócio é top-down. É uma decisão que a direção precisa tomar, e tem que acreditar nela, mudar os processos de governança, indicadores, tudo, para que você consiga ir mudando, e remunerando, e reconhecendo as pessoas, de acordo com aquilo que você quer atingir", diz ela.

"Os mecanismos de governança usados até hoje não propiciam a mudança. Trabalhamos em silos. Não sentamos todos na mesa de forma transversal", comenta  Paula, retratando a realidade de como a maioria das empresas trabalha. "São chefes distintos, métodos distintos, bônus distintos, objetivos distintos, dinheiros distintos…", diz Mota. Tudo isso faz com que trabalhar considerando um único propósito, baixando a guarda para ajudar a entender a maior dor do cliente e resolvê-la, acabe se tornando o maior dos desafios.

"Cada departamento da empresa consegue definir bem quem é o cliente, mas cada um deles o enxerga por um lado do prisma, e isso começa a aparecer quando você coloca todo mundo junto", diz Mota. "A gente teve que chegar para o comprador e dizer que a missão dele não era mais fazer o processo mais espremido possível, mas pilotar o processo [tratado pelo app CSFácil] até o ponto de equilíbrio, de modo a não afetar a produtividade do cliente [o caminhoneiro];  para o pessoal de atendimento, dentro da central, dizer que talvez valesse a pena abrir mão da rapidez e fazer mais uma ligação que, no fim, poderia ajudar para cortar um passo na jornada do cliente lá na ponta, quando ele chega no terminal", comenta o executivo.

Como diria o próprio Peter Drucker, "mais arriscado que mudar é continuar fazendo as mesmas coisas".

Mas um cuidado precisa ser tomado: o de não olhar para a mudança como um processo pontual. "Se a empresa não olhar para o negócio como um todo, corre o risco de ter o digital fazendo apenas pequenas iniciativas que contribuem pouco para mudar o negócio. Isso não é ser digital. Isso é ter algumas iniciativas de experiência digital", diz Paula Cardoso.

Para mudar a cultura da empresa é necessário que todos compreendam o que é ser um negócio digital. "Mais do que patrocinadores da mudança, os líderes precisam ser seus evangelizadores. E o RH pode ajudar muito", comenta Mota.

Isso não significa sair promovendo programas motivacionais. Significa atuar na gestão da mudança, na absorção das novas práticas. Como vimos, a transformação digital muda o dia a dia das pessoas, a maneira como elas decidem, e vai criando novos valores que levam à nova cultura, mais colaborativa, mas leve…

Além de compreender o "como" a transformação acontecerá é fundamental entender "quem" a tornará realidade. Na Nestlé, por exemplo, foi instaurado um processo de mentoria reversa no qual as pessoas que navegam pelo modelo digital mais facilmente trocam experiências com aquelas que não estão muito bem adaptadas. E o RH tem atuado na capacitação das pessoas para novas formas de atuação. "Estamos revendo todas as habilidades, todas as performances, disponibilizando todo o tipo de treinamento dentro da organização, definindo qual é o tipo de profissional que a gente quer. Isso não significa mudar todo mundo, mas dar oportunidades e aprender a conviver com os dois lados", conta Carolina Sevciuc.  Aos poucos, mais gente vai assumindo a nova mentalidade e o perfil exigidos pelo digital, praticando os novos modelos e a empresa se percebe um negócio digital.

" O impacto pessoal é o mesmo de quando eu comecei a trabalhar. As exigências do digital são tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão básicas, que você não sabe como é que você não fazia assim antes", diz Paula Cardoso. "A primeira mudança para mim foi realmente a de como olhar o negócio e como olhar o cliente. Pequenos detalhes que você começa a perceber que se feitos de forma diferente, mudanças muitos simples, podem ter um impacto muito grande na vida do cliente", completa.

Paula sabe que a transformação digital ocorrerá em primeiro momento de dentro para fora,  com (e para) as pessoas que fazem parte da  empresa. Depois, envolvendo todo o ecossistema. Sem contar com as pessoas, não há tecnologia, metodologia ou pacote de soluções digitais capaz de levar este processo adiante. Portanto, encontrar formas de engajar a organização ao processo de transformação, de incluir as pessoas através do convencimento, é muito importante, para não correr o risco de "morrer certa, abraçada às suas crenças", comenta a executiva..

Carolina Sevciuc vai além. Para ela, a transformação digital é, acima de tudo, um processo de saber fazer escolhas. "Saber onde colocar a nossa energia", diz. "Se cercar das pessoas certas, que tenham repertório e sejam capazes de ter ajudar a encontrar o próprio caminho, uma vez que não existe um manual de inclusão digital, modelo único. "E, acima de tudo, ter muita paciência", completa a executiva da Nestlé.

Ambas, e outros executivos presentes ao evento da CI&T concordam que a questão mais importante para quem está conduzindo o processo de transformação digital é a resiliência. Abordar a cultura organizacional pode parecer amedrontador, às vezes. Mas também é desafiador. Estamos falando de uma maratona, na qual cruzar bem a linha de chegada é o mais importante.

Em 2017, uma pesquisa da McKinsey já havia apontado os pontos abordados pelos executivos como os 3 principais desafios sobre a cultura na perspectiva digital:

  1. Silos funcionais e departamentais;
  2. Medo de correr riscos;
  3. Dificuldade em formar e atuar em uma visão única do cliente.

Segundo a consultoria, para avançar nestes aspectos, a empresa não deve se preocupar em criar uma "cultura perfeita", mas sim uma "cultura de mudança constante".

E aí é impossível não mencionar outra frase famosa de Peter Trucker:  "A questão relevante não é simplesmente o que faremos amanhã, mas sim o que faremos hoje para nos prepararmos para o amanhã".

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Vale muito ler outros dois artigos que partem da frase de "A cultura come a estratégia no café da manhã" para abordar o processo de transformação digital.

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.