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Cristina de Luca

Maior conectividade não significa necessariamente maior harmonia

Cristina De Luca

01/05/2019 13h47

A frase do título aí em cima não é minha. É do historiador e escritor Yuval Noah Harari, no início da conversa que teve recentemente com o CEO do Facebook, Mark Zuckerberg. "Conectar pessoas pode levar a muitos conflitos", completou.

O embate entre eles expôs duas visões de mundo radicalmente opostas. Vale reservar uma hora e meia desse feriado de Primeiro de Maio para assistir. Particularmente, tendo a concordar mais com Harari. Os argumentos de Zuckerberg são, quase sempre, derivados da ideia de que a Internet permite que as pessoas se conectem com grupos de pessoas que compartilham seus reais valores e interesses. E isso é bom. Harari, por sua vez, enxerga melhor os riscos nessa conectividade baseada em valores e interesses.

Harari faz questionamentos incômodos: O Facebook quer "conectar" pessoas para qualquer propósito específico, ou simplesmente mantê-las olhando para uma tela? Como construir uma rede social que melhore a coesão entre as pessoas ao redor do mundo, em vez de a corroer? Como construir sistemas de inteligência artificial que não sirvam como ferramentas de vigilância e controle? A economia da Internet está minando a agência humana e a democracia?

Ao menos uma pergunta, velada, ficou no ar: Por que alguém realmente confiaria nas boas intenções do Facebook?

Não pude deixar de pensar nas palavras inicias de Harari após o keynote de Zuckerberg, ontem, na F8 2019, a conferência anual do Facebook para desenvolvedores. Ele quase não deu detalhes sobre como vai construir uma plataforma social mais centrada em privacidade, integrando os serviços de mensageria, dando às pessoas espaços onde elas podem se expressar livremente e se sentir conectadas com os indivíduos e comunidades que mais importam para elas. Preferiu piadas sem graça sobre privacidade, que pouco o ajudaram a convencer a platéia – e os próprios funcionários do Facebook – de que está falando sério quando diz que o "futuro é a privacidade" (mote repetido em todas as apresentações que se seguiram à dele).

"Acredito que, se criarmos um serviço interoperável totalmente criptografado, essa será uma importante contribuição para o mundo", disse Zuckerberg."Trata-se de construir o tipo de futuro em que queremos viver", acrescentou. "Construir um mundo onde possamos ser nós mesmos e viver livremente e saber que nossos momentos privados serão vistos apenas pelas pessoas que queremos".

Muitas das mudanças anunciadas para o Messenger e para o próprio Facebook parecem já começar a preparar o terreno para uma plataforma interoperável de mensagens criptografadas, que funcione igualmente no Instagram, no WhatsApp e no Messenger. Zuckerberg argumenta que essa plataforma protegerá as conversas privadas de bilhões de pessoas em todo o mundo. Mas o fará também contra o próprio Facebook? Muito provavelmente, não!

Para muitos analistas, a fusão dos aplicativos de mensageria garantirá que o Facebook tenha um negócio de publicidade mais resiliente – e possivelmente ainda maior – nos próximos anos, caso o News Feed  siga perdendo sua eficácia. O próprio redesenho do Facebook, mais centrado nos Grupos, facilitando a migração das pessoas de espaços públicos para privados, parece atender a essa lógica.  Hoje é difícil para a rede social ter uma visão completa de nossos hábitos, com quem falamos e sobre o quê.

"A propriedades do Facebook funcionam como um conjunto de silos. Instagram e WhatsApp têm seus próprios bancos de dados e camadas de identidade separadas da rede social principal. Os usuários devem criar um login para cada rede distinta, o que cria uma nova "identidade" no banco de dados de cada aplicativo. Mesmo que um usuário faça login no Instagram usando o recurso de login do Facebook,  cada serviço segue usando sua própria infraestrutura de banco de dados separada.Em outras palavras, todas essas plataformas são efetivamente distintas uma da outra, apesar de compartilharem algumas funcionalidades comuns", explica o desenvolvedor e jornalista Owen Williams, editor do blog Charged.

Owen acredita que a solução do Facebook para resolver esse problema será unificar a camada de identidade de todos os seus aplicativos – permitindo que o WhatsApp, o Instagram e o Messenger reconheçam o verdadeiro "você" – depois criando pontos comuns para os bancos de dados se conectarem uns aos outros.

"Hoje o Facebook precisa correlacionar os dados que fornecemos a cada aplicativo para segmentar anúncios corretamente, o que é propenso a erros e inconsistências. Unificar isso e remover esse processo permitiria que esses aplicativos acessassem um perfil de anúncio que entendesse tudo sobre nós, independentemente de onde os dados realmente estivessem. Isso tornaria muito mais fácil para a empresa coletar dados das pessoas com as quais interagimos e tópicos gerais em conversas, independentemente de onde as tenhamos, construindo efetivamente uma mega-plataforma nos bastidores", comenta.

"Abstraindo a camada de identidade, a empresa seria capaz de acompanhar melhor o que você está fazendo, mesmo que suas conversas permaneçam armazenadas em bancos de dados separados. E essa camada de identidade também seria a lente unificada que o Facebook usaria para nos ver, fornecendo a capacidade de veicular anúncios relevantes independentemente do aplicativo com o qual estivéssemos interagindo", arrisca Owen.

Faz sentido. A plataforma unificada de mensagens permitiria que o Facebook pintasse uma imagem melhor de nós, integralmente, em vez de forçar a empresa a unir pedaços de metadados desconectados, como acontece hoje. Algo incrivelmente atraente para os anunciantes.

Não por acaso, Zuckerberg terminou sua fala com a garantia de que o Facebook tem uma ideia clara de para onde quer ir e dos tipos de produtos que deseja construir para as pessoas."Isso não é apenas sobre a construção de novos produtos. É uma grande mudança na forma como administramos essa empresa ", disse.

Para os críticos, portanto, parece muito claro que a guinada pró-privacidade está menos relacionada a uma real necessidade dos usuários, um benefício óbvio para eles (uma conveniência), como tenta fazer crer o CEO, e mais a uma real necessidade do próprio Facebook para seguir assegurando a ampliação de suas receitas. Em entrevista ao New York Times, o próprio Zuckerberg admite que a se o Facebook quiser permanecer dominante, terá que se reorientar.

Há ainda quem acredite que, ao posicionar a unificação de suas plataformas como uma iniciativa focada no usuário, e em como as pessoas trocam mensagens, a verdadeira intenção do Facebook seja desviar a atenção negativa dos reguladores para a integração, que tornará a empresa ainda mais poderosa.

Ontem, logo após a fala de Zuckerberg na F8, Sarah Miller, vice-diretora do Open Markets Institute e porta-voz da coalizão Freedom do Facebook, foi dura: "Mark Zuckerberg fingindo preocupação com a privacidade dos usuários é risível. Um esforço flagrante para impedir que o público veja o dano que seu poder de mercado continuará a causar à democracia. A FTC  [Federal Trade Commission] precisa acordar, intervir e acabar com o Facebook antes que seja tarde demais".

A coalizão tem três objetivos principais: impedir a integração do Facebook, Instagram, WhatsApp e Messenger; forçar o Facebook a ser interoperável com redes sociais concorrentes; e a introdução de  regras de privacidade fortes para proteger os usuários. Todos aparentemente improváveis hoje.

No curto prazo, a força do Facebook é inegável. A empresa vem obtendo lucros recordes, por dois trimestres consecutivos, o tempo de uso de seus produtos voltou a crescer, e novos usuários continuam a surgir em todo o mundo.

O que o futuro nos reserva? Por enquanto, além do redesenho do Facebook e da reconstrução do Messenger, o Facebook Dating chegando a mais de 14 países, incluindo o Brasil, adicionando um recurso batizado de "Crush Secreto". O envio de itens pelo Marketplace. Fortalecimento da plataforma Spark AR. Possibilidade de pré-encomenda dos Oculus QuestRift S, com lançamentos previstos para 21 de maio. Disponibilidade do Portal para países europeus, com chats criptografados do WhatsApp. Redesenho da câmera do Instagram, adicionando um adesivo de doação e permitindo que os influenciadores vendam o material por meio de tags de compra (o app também está testando uma versão que esconde a quantidade de curtidas que um post possui e alguns recursos anti-bullying). E o teste de pagamentos no WhatsApp na Índia, além da adição do recurso de criação de catálogos para empresas.

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.