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Cristina de Luca

A poucos passos de uma Grande Muralha Digital

Cristina De Luca

22/05/2019 08h53

A "Guerra Fria Tecnológica" começou, declarou Tim Culpan, colunista da Bloomberg. "E o vencedor não será o lado com os melhores lutadores, mas aquele com maior capacidade de suportar a dor de perdas prolongadas".

Primeiro Trump proibiu a venda de equipamentos de telecomunicações de empresas chinesas nos Estados Unidos. Depois, colocou a Huawei na lista negra das companhias para as quais as empresas americanas estão proibidas de fornecer serviços técnicos e componentes (leia-se, hardware e software). Ato contínuo, o Google, suspendeu o licenciamento do Android e de outros serviços para a Huawei. Mas as bolsas de todo o mundo reagiram mal ao anúncio do rompimento, o que levou Trump a autorizar o Departamento de Comércio dos Estados Unidos a emitir uma licença temporária, permitindo que as empresas norte-americanas continuem fazendo negócios com a fabricante chinesa, ao menos pelos próximos 90 dias. Notícia recebida com certo desdém pela Huawei.  A empresa, assim como outros fabricantes chineses, está decidida a se tornar tecnologicamente independente, mesmo que isso leve anos.

Nesta terça-feira, 21 de maio, o presidente chinês, Xi Jinping, pediu a adesão da população a "nova Longa Marcha".  Trocando em miúdos, que os cidadãos chineses estejam preparados para dificuldades a longo prazo. Ele não tem a ilusão de que possa resolver a guerra comercial com os EUA em um futuro próximo. A mensagem é clara: a China está pronta para travar uma guerra comercial prolongada.

Na opinião de Tim Culpan, podemos esperar que a China redobre os esforços para desenvolver um sistema operacional móvel doméstico, projetar seus próprios chips, desenvolver sua própria tecnologia de semicondutores (incluindo ferramentas de projeto e equipamentos de fabricação) e implementar seus próprios padrões tecnológicos.  E a Huawei é uma das companhias chinesas em melhor condição para  abraçar essa empreitada.

A Huawei é a segunda maior fabricante de smartphones do mundo (tem 24% do mercado de smartphones Android, atrás somente da Samsung, com 26%). Acontece que metade dessa participação é na China, onde, como todos os concorrentes chineses, administra uma versão localizada do Android, baseada no projeto Android de código aberto. Os smartphones usados na China não têm acesso aos serviços do Google, graças ao Great Firewall. Portanto, no gigantesco mercado doméstico, a Huawei não será prejudicada pela proibição de licenciamento do Android. Ela afetará principalmente os smartphones vendidos na Europa, maior mercado internacional para a Huawei, bem como os esforços da companhia para  conquistar as Américas, vide a agressiva promoção feita pela empresa no último fim de semana no Brasil.

Quem ganha e quem perde com a guerra comercial entre EUA e China? Difícil dizer. Mas as gigantes de tecnologia americana não sairão imunes.  A própria Bloomberg chegou a dizer isso em um editorial , que a nova ofensiva de Trump contra a Huawei era um erro.

No curto prazo, no cenário internacional,  "o embate entre Google e Huawei, por exemplo, pode ser benéfico para a Samsung, bem como para outros OEMs chineses, como a OnePlusOne e a Xiaomi", avaliou o analista Ben Thompson. "Mas não acredito em ganhos para a Apple. Neste momento, acho muito mais provável que os compradores do Android troquem para outros OEMs Android, do que para a plataforma iOS",avaliou o analista Ben Thompson.

Pior. "A China tem um ponto de pressão real quando se trata das fabricantes americanas: a Apple", disse ele. Não  só grande parte dos iPhones tem o selo "Made in China", como o mercado consumidor chinês representa uma fatia expressiva das receitas com a venda do dispositivo, hoje em queda.  Só esse ano a Apple baixou o preço do iPhone na China três vezes, na tentativa de inverter a curva de faturamento aumentando a quantidade de smartphones vendidos aos chineses.

Thompson acredita que a Guerra Fria Tecnológica entre China e Estados Unidos será prejudicial, sobretudo, para os fornecedores americanos de componentes eletrônicos, como processadores. A perda da Huawei como cliente é um problema tão grande quanto a perda de Huawei como fornecedora de equipamentos de rede.  Principalmente se a empresa chinesa tiver conseguido o fôlego do qual precisa para concretizar seu plano de reconstruir a sua cadeira de suprimentos, incluindo a fabricação própria de peças chave, estocando uma quantidade grande de componentes de fornecedores do Qualcomm e Intel.

Nos últimos anos, a Huawei vem aprofundando seus laços com fornecedores europeus e japoneses, ao mesmo tempo em que fornece financiamento a fabricantes chineses de componentes para ajudá-los a se tornar alternativas aos fornecedores norte-americanos.

"Se a Huawei e seus chips caseiros se tornarem padrão a partir da entrada em operação das redes 5G na Europa e na Ásia, isso será ruim para os produtores americanos de chips", explica o site Ozy.com, que tem mantido um diário muito bem feito sobre a Guerra Fria Digital.

Nos últimos meses, a Qualcomm vem sofrendo com os efeitos do embate entre os dois países. Em abril, anunciou o fim de uma parceria histórica com a província chinesa de Guizhou, materializada na joint venture Huaxintong Semiconductor (HXT), símbolo do esforço da China para impulsionar suas indústrias domésticas de TICs. Autoridades do governo chinês apresentaram a HXT como um exemplo brilhante de como o país iria alavancar experiência estrangeira para construir sua indústria de semicondutores. De um lado da joint venture, havia o governo local de Guizhou, uma província pobre e rural que atraiu todos, da Apple à Huawei, para construir data centers com a promessa de eletricidade barata e temperaturas baixas. Do outro lado  estava a Qualcomm, que prometera investir na economia chinesa.

No início da semana, quando a Guerra Fria Tecnológica ficou mais evidente, a Qualcomm viu seu valor de mercado cair quase 5% depois do anúncio de que também não forneceria mais componentes para a Huawei. Não foi tão ruim, já que na sexta-feira anterior as ações da companhia haviam subido muito por conta do anúncio de encerramento da disputa por patentes com a Apple.

Analistas da consultoria de risco Eurasia Group observaram que, sem fornecedores dos EUA, a Huawei não seria capaz de realizar nem mesmo a manutenção de rotina e a substituição de hardware.
Além disso, a proibição prejudicaria seriamente os esforços da China para garantir um papel de liderança na emergente tecnologia de rede 5G, que se espera amplamente crítica para o futuro crescimento econômico. Talvez… Mas eu não subestimaria tanto os chineses assim. Eles são resilientes e obstinados!

E se a China se transformar de fato em uma potência da economia digital, vai incomodar um bocado as companhias americanas. Nunca é demais lembrar que, no início do ano, durante o Fórum Econômico Mundial, o bilionário chinês Jackie Ma, fundador do Alibaba, disse com todas as letras que o gigante do e-commerce não pretendia levar suas novas tecnologias para a Europa ou para os EUA: "Vamos para os países que acreditam em nós. Vamos para a África"!

Até o bilionário George Soros acusou o presidente chinês Xi Jinping de ser "o adversário mais perigoso" da sociedade aberta, por poder usar Inteligência Artificial e Machine Learning para o controle social.

Esta semana, a newsletter The Shift antecipou o lançamento mundial de um novo serviço de gestão de banco de dados para nuvem da Huawei, chamado GaussDB, que tem recursos de Inteligência Artificial nativos. O evento de apresentação aconteceu um dia antes de a companhia ser incluída na black list de Trump.

O GaussDB tem duas vantagens importantes, segundo a companhia chinesa:

  • incorpora recursos de IA no ciclo de vida completo de bancos de dados distribuídos, possibilitando autoatendimento, autoajuste, autodiagnóstico e auto-recuperação, melhorando o desempenho com tuning em mais de 60%;
  • e faz uso de uma estrutura de computação heterogênea, incluindo x86, ARM, GPU e NPU, para aumentar seu desempenho no processamento de workloads, ficando 50% acima da média do setor.

O anúncio afeta diretamente concorrentes como Microsoft, IBM, Google, Amazon e Oracle. Esta última mais diretamente, já que há dois anos é a única do mercado a oferecer um banco de dados autônomo com recursos de Inteligência Artificial. 

Os chineses têm armas poderosas, tanto na nuvem quanto na infraestrutura 5G! E se fizeram corretamente a lição de casa de absorver a inteligência do processo de criação tecnológica (concepção e design), o poderio industrial chinês será elevado a um outro patamar, transformando o país em um inimigo indigesto. 

Neste domingo, em entrevista à Fox News, o presidente americano disse  que não pretende deixar a China ser a maior economia do mundo.

Os próximos capítulos prometem!

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.