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Cristina de Luca

IGF 2019 adverte: a internet livre, aberta e estável está em perigo

Cristina De Luca

01/12/2019 10h43

Na última semana, representantes de governos, organizações internacionais, empresas, sociedade civil, academia e do setor de TI de diversos países se reuniram em Berlim (Alemanha) para o 14º Fórum de Governança da Internet (IGF), organizado pela Organização das Nações Unidas (ONU). E o balanço final do encontro, encerrado na última sexta-feira (29) não poderia ser mais preocupante: algo precisa ser feito o quanto antes para garantir que a Internet, base da nova economia digital, siga livre, aberta, estável e confiável.

"A internet global pode se tornar instável e vulnerável a ataques se for fragmentada – o resultado não apenas de leis conflitantes, mas também de países como China e Irã, que colocam paredes virtuais entre o mundo e seu país", alertou logo na abertura a chanceler Angela Merkel, na qualidade de anfitriã do encontro, ressaltando que o futuro da internet não pode ser definido apenas por estados e governos.

"A ideia de soberania digital é de suma importância, mas isolamento não é uma expressão de soberania. Isso não pode significar protecionismo, não pode significar bloqueios arbitrários da rede, não pode significar censura. E, infelizmente, este tem sido um instrumento político perigoso para interferir na forma como as pessoas se conectam", afirmou Merkel.

E, lembrando que a ideia clássica de multilateralismo não serve mais para os propósitos de hoje, pediu uma revisão da governança da internet. Como a internet "preocupa a todos",  segundo ela, a academia, o setor privado, os cidadãos e sociedade civil também devem opinar sobre o desenvolvimento das políticas e da infraestrutura que permite o uso rede, uma vez que a digitalização é uma condição prévia para a coesão social e a estabilidade econômica.

"Mais do que debater sobre o que queremos, precisamos discutir com maior profundidade o que não queremos. A tecnologia tem que servir às pessoas, e não o contrário. Como indivíduos e como sociedade, o fundamental é que possamos exercer nossa autodeterminação digital", completou a chanceler, dando o tom dos debates realizados nos 4 dias do encontro.

Lacuna de governança

Na opinião do o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, novos muros virtuais estão sendo construídos na internet, ameaçando a rede, ao criar uma lacuna política e de governança. "Existe um risco real de uma ruptura geopolítica – uma grande fratura no comércio, segurança e sistemas da internet", lembrando que algumas nações estão construindo fronteiras cada vez mais difíceis de serem transpostas no ciberespaço, ao mesmo tempo em que registra-se um número cada vez maior de ataques cibernéticos transfronteiriços.

De fato, o Irã tem sistematicamente bloqueado o acesso à internet. A Rússia quer usar a rede como uma espécie de intranet nacional. Na China, são realizadas conferências para discutir maneiras pelas quais a exclusão digital e a vigilância em massa podem funcionar.

"Isso coloca em risco nossa aspiração comum por uma Internet universalmente acessível, gratuita, segura e aberta – um mundo, uma rede, uma visão. E está claro para mim que vivemos em um mundo. Mas não está totalmente claro que viveremos apenas com uma rede', disse.

Discursos vazios? Não mesmo! Fazer negócios online só vai ficar mais difícil daqui em diante, segundo os resultados da pesquisa apresentada pela organização Internet & Jurisdiction Policy Network, que ouviu gigantes corporativos como Google, Facebook, Siemens e AT&T, além de governos em todo o mundo e uma variedade de acadêmicos, ativistas e organizações internacionais.

Dos 150 participantes da pesquisa, 79% consideram que não há coordenação e coerência internacional suficientes para enfrentar os desafios jurídicos transfronteiriços na Internet e 95% concordam que, se nada for feito, nos próximos três anos haverá confrontos crescentes entre as regras digitais diferentes entre países membros da ONU. A ausência de coordenação está levando a uma divergência de padrões e impedindo que os atores resolvam com eficiência os problemas online. A falta de interoperabilidade legal está criando altos níveis de incerteza jurídica e gerando desconfiança entre os usuários da Internet que não sabem quais regras se aplicam onde.

"Estamos enfrentando um desafio institucional: medidas políticas improvisadas não abordam os problemas de maneira coerente e sustentável. As partes interessadas devem desenvolver novas maneiras de coordenar para enfrentar seus desafios comuns. Coletivamente, precisamos ir além da bricolagem da governança", disse Bertrand de La Chapelle, diretor executivo e cofundador da Internet & Jurisdiction Policy Network.

"O que vemos agora é que a incerteza jurídica prevalece, especialmente para pequenas e médias empresas que não podem saber quais leis em todo o mundo se aplicam aos seus fluxos de dados transfronteiriços", disse Paul Fehlinger, outro co-fundador da instituição. "Entidades muito grandes podem gerenciar isso, mas atores menores não. Essa incerteza jurídica dificultará o desenvolvimento da economia digital e, principalmente, o crescimento de novos participantes".

É um problema de todos, portanto, uma vez que nenhum país pode se dar ao luxo hoje de dissociar permanentemente sua economia, indústria e, portanto, seus cidadãos da internet.

"Se não agirmos agora, e agirmos juntos para proteger a rede daqueles que exploram, dividem e prejudicam, corremos o risco de esquecer seu potencial para o bem", afirmou mais uma vez Tim Berners-Lee, o pai da Web.

Em resumo, a cooperação internacional, os mecanismos transfronteiriços eficazes e a cooperação público-privada são essenciais para fortalecer a internet. Ontem, hoje e sempre.

Por uma internet realmente global

Nesse clima, mecanismos que construam confiança e cooperação passam a ser indispensáveis. E há muito a ser feito, começando por reformular o IGF para que ele possa servir como um local institucional para iniciativas em "cooperação digital". O documento sistematizando as sugestões apresentadas pelo Painel de Alto Nível sobre Cooperação Digital da ONU deve ser divulgado nos próximos dias.

Mas iniciativas complementares precisam andar em paralelo.

Do ponto de vista político, por exemplo, há hoje um debate sobre se seria possível que pessoas que vivem sob regimes repressivos desfrutem de internet grátis. Há quem diga que sim e aponte como caminho viável a criação de redes paralelas operadas de forma autônoma. O desafio é que esse sistema não é escalável para milhares ou centenas de milhares de pessoas.

Na maioria dos casos, os regimes autoritários não desligam completamente suas infraestruturas da internet global. Esses regimes tentam restringir o uso de certos serviços pela população civil, mas não abrem mão
de certos serviços online institucionais, como os que servem ao comércio mundial. Então, há sempre uma brecha de conexão com o mundo que, se explorada corretamente, pode ajudar a construir soluções que permitam acesso a servidores em países livres. Algo difícil, mas não impossível.

E já que tocamos no assunto comércio internacional, o clamor geral, desde de a realização da reunião anual do Fórum Econômico Mundial, em Davos, no início do ano, é para a revisão das barreiras tarifárias e ratificação de tratados que decidem questões importantes como o fluxo de dados transfronteiriço, a localização de dados e a divulgação de código-fonte.

Muitos novos assuntos de política digital entraram em negociações comerciais recentes sob o termo geral "comércio eletrônico". Nas discussões comerciais, eles se referem a questões que vão além daquelas relacionadas à forma como os consumidores compram bens e serviços online. Alguns países desejam que essas negociações abranjam uma série de questões com implicações de longo alcance para privacidade, concorrência, segurança cibernética e o futuro dos empregos. Entram em jogo tópicos como inteligência artificial, segurança cibernética e neutralidade da rede, influenciando radicalmente os interesses públicos.

Impactos econômicos

Em um mundo cada vez mais interconectado, a capacidade de transferir, recolher e processar informações digitais tornou-se um componente essencial para possibilitar o crescimento econômico, facilitar o acesso à educação, saúde e outros serviços sociais, ou simplesmente capacitar as pessoas em todo o mundo a acessar informações e estarem conectadas entre si. Ao mesmo tempo, as interrupções provocadas pelos avanços tecnológicos levantam desafios relativamente a questões trabalhistas e de privacidade.

Quais são os riscos de discriminação criados pelo uso da Inteligência Artificial (IA)? Que acesso aos dados através das fronteiras é necessário para a aplicação da lei para combater o cibercrime? Como a privacidade pode ser protegida em plataformas digitais? Como enfrentaremos o desafio de combater o conteúdo ilegal online e proteger os direitos digitais ao mesmo tempo? Essas foram algumas das questões importantes que o Conselho da Europa abordou durante o Fórum de Governança da Internet.

Como parte da Declaração sobre o próximo século dos negócios globais, o Secretário Geral da International Chamber of Commerce (ICC),  John WH Denton, instou os líderes empresariais a aproveitar o poder das tecnologias digitais para reduzir as barreiras no comércio global. Por meio de sua campanha #DontLetTariffsBreak the Internet, lançada durante o IGF 2019,  a ICC está pedindo apoio para a renovação de uma moratória da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre transmissões eletrônicas que desempenharam um papel vital no desenvolvimento da economia digital.

"Atualmente, há países que procuram aplicar tarifas sobre downloads digitais através das fronteiras. Isso terá um enorme impacto nos negócios digitais … ", disse Denton recentemente em uma entrevista à Sky News.

Lembrou das novas taxas cobradas pela França e Reino Unido? Pois é… Há bons motivos para que existam, e bons motivos para que sejam justas e aplicáveis de modo a não inibir o surgimento de novos negócios na internet.

Nesse momento, inclusive, a União Europeia se dedica a encontrar meios de melhorar a proteção de lojistas e consumidores envolvidos em transações online. O que inclui manter o acesso à internet aberto e proteger os comerciantes das tentativas de restringir o fluxo de dados ou de apreender seus dados e código-fonte.

Em outubro deste ano, o Brasil apresentou em um evento da OMC uma proposta para a facilitação do comércio por meio de tecnologias digitais.

Vale lembrar que quase todas as tentativas anteriores de atualizar regras de comércio global fracassaram devido à falta de consenso na organização, e os reformadores têm cada vez mais visado a massa crítica de um subconjunto de membros. A OMC tem hoje um problemão nas mãos.

"Historicamente, altos níveis de restrição comercial tem um claro impacto no crescimento, na criação de empregos e no poder de compra no mundo inteiro", afirma Roberto Azevêdo, diretor-geral da OMC.

Um relatório divulgado pela entidade no último dia 21 revelou que entre a metade de maio e meados de outubro deste ano, países do grupo introduziram medidas de restrição a importações no valor de US$ 460,4 milhões, um aumento de 37% em relação ao período anterior, de outubro de 2018 a maio de 2019. Diante dos resultados, a OMC reduziu sua projeção para o crescimento do comércio mundial em 2019 de 2,6% em abril para 1,2% agora, o que representaria o menor avanço desde a crise financeira internacional de 2008.

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.