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Cristina de Luca

Entenda toda a polêmica em torno do acesso gratuito aos aplicativos móveis

Cristina De Luca

12/09/2017 12h29

Faz tempo _ desde a aprovação do Marco Civil da Internet _ que a prática de zero-rating _ acesso gratuito a determinados apps _ por parte das operadoras móveis _ Vivo, Tim, Claro e Oi _ é questionada por órgãos de defesa do consumidor e defensores do princípio de neutralidade de rede _ o de que os provedores de serviços de Internet (ISPs) devem tratar todos os dados que viajam em suas redes de forma justa, sem discriminação inadequada que favoreçam aplicativos, sites ou serviços comerciais específicos. Este mês, o assunto voltou a esquentar, depois de o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) decidir arquivar uma denúncia do Ministério Público contra as operadoras por quebra da neutralidade de rede e práticas anticompetititivas nos acessos móveis a Facebook e Whatsapp sem desconto da franquia de dados.

Ontem, dia 11 de abril, a Proteste – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor decidiu recorrer ao Cade contra o arquivamento, com argumentos que, aos poucos, vêm se transformando em entendimento corrente entre alguns conselheiros do Comitê Gestor da Internet: a de que o zero-rating não fere a neutralidade enquanto o plano de dados que suporta a oferta das operadoras móveis estiver ativo.

"A partir do momento em que o usuário fica inadimplente, ou com a conta em atraso, e todos os serviços são suspensos, o acesso aos apps objeto do zero-rating também deverá ser suspenso. Se não for, aí sim, temos uma quebra do princípio de neutralidade", me explicou, em off, um dos expoentes do CGI.br.

No recurso ao Cade, a Proteste faz menção explícita a essa prática. "A partir do momento que a franquia se esgota e o provedor disponibiliza o acesso apenas a determinados aplicativos ou conteúdos e bloqueia todo o resto do que está disponível na internet, a obrigação de tratamento não discriminatório e a proibição de bloqueio passam a ser desrespeitadas", diz o texto. A associação pede a continuidade o inquérito administrativo para apuração de infrações à ordem econômica contra as operadoras para que a Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (Senacon) e o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) sejam ouvidos no processo.

Antes do arquivamento, o Cade ouviu a própria Proteste, a Associação Brasileira de Internet (Abranet), o Conselho Diretor da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a Secretaria de Política de Informática do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Todos têm assento no Comitê Gestor.

O que alega o Ministério Público?
No Inquérito, o Ministério público questiona justamente práticas de algumas operadoras que vão além da oferta de acesso gratuito a determinados aplicativos (Facebook, Twitter e WhatsApp) em planos de dados que permitem acesso pago a outros apps que façam uso da internet para funcionar, embora mencione também um plano da Claro que permite a seus contratantes justamente isso: navegar na Internet, de forma gratuita e ilimitada, sem desconto no pacote ou franquia de Internet adquirida, ao acessar exclusivamente às redes sociais Facebook, Twitter e WhatsApp. Assim, o pacote de dados ou franquia de Internet contratada seria consumido normalmente com outros acessos não contemplados neste plano.

O Ministério Público cita também um plano da TIM, chamado "Controle WhatsApp", por meio do qual o cliente da operadora poderia enviar mensagens de texto e voz, fotos e vídeos através do aplicativo WhatsApp, sem incorrer em consumo da franquia de Internet.

Segundo minha fonte no Comitê Gestor, esses tipos de ofertas comerciais da Claro e da Tim seriam lícitas, do ponto de vista da neutralidade da rede, desde que o acesso às redes sociais deixasse de funcionar quando a franquia de dados acabasse ou o serviço de acesso à internet fosse suspenso por inadimplência. O que, segundo alguns usuários, não acontece, pelo menos no caso do fim da franquia.

Mas é bom deixar claro que esse é o entendimento de alguns conselheiros do CGI.br. Não há consenso sobre esse assunto.

O Ministério Público cita também um plano da Oi ( o "Facebook e Twitter Grátis"), que permitiria ao usuário acessar tais conteúdos sem custo ou consumo da franquia de Internet, por meio de um aplicativo oferecido pela própria operadora, o "Opera Mini". E planos especiais de acesso a redes sociais da Vivo por meio dos quais os clientes comprariam determinado volume de dados para utilização exclusiva do aplicativo do Facebook, cujo valor por megabyte teria valor inferior ao especificado em seus planos de acesso padrão.

Segundo o MPF, tais práticas estariam distorcendo a competição no mercado de aplicativos, constituindo obstáculo ao crescimento de empresas concorrentes e ao ingresso de novos entrantes, desestimulando a inovação e incentivando o aumento de preços para a contratação dos serviços de conexão à Internet móvel, em detrimento do consumidor.

As operadoras alegam que isso só seria verdade se as mesmas condições oferecidas às redes sociais não estivessem à disposição de aplicativos de outros empresas, obedecendo ao princípio de reciprocidade. O MPF discorda. Alega que "sob a ótica dos consumidores, a prática, sob o pretexto de ofertar algo gratuitamente, distorce a concorrência, cujo grande beneficiário é o próprio consumidor, bem como afasta a autodeterminação do internauta, que está sendo enganado em relação à isonomia no acesso às aplicações, atuais e futuras". Diz também que "o estratagema causa severos impactos no equilíbrio existente com relação à aquisição, pelo internauta, do plano que ele deseja, em condições justas e razoáveis, pois torna mais oneroso um acesso neutro à Internet".

A Proteste e a Abranet têm posicionamento semelhante ao do Ministério Público. A Abranet entende que a oferta de planos que diferenciem as condições de acesso a certas aplicações constitui comportamento em clara afronta à Lei de Defesa da Concorrência e também ao Marco Civil da Internet (e ao Decreto n. 8.771/2016 que o regulamentou), e, na prática, desvirtua fortemente as condições de competição na web. No entender da associação, o Decreto n. 8.771/2016 – que regulamentou o Marco Civil da Internet -, proíbe a prática do modelo denominado "zero-rating" e destaca o papel do CADE na repressão aos abusos cometidos pelas operadoras de telecomunicações. Como as práticas denunciadas pelo MPF afetam a concorrência, caberia ao CADE, portanto, reprimi-las.

Já a Proteste afirma que o acordo comercial entre as operadoras e serviços como Facebook e WhatsApp "implica em imposição aos consumidores, sem que possam exercer o direito de escolha, com reflexos quanto à proibição de venda casada". De acordo com a associação, à luz dos princípios de governança da Internet, do Marco Civil da Internet e de seu decreto regulamentador, a prática do zero-rating associada a planos franqueados com acesso restrito a determinados conteúdos e aplicações e bloqueio aos demais conteúdos viola o princípio da neutralidade de rede. A prática supostamente resultaria em graves prejuízos para a sociedade, tanto pelo aspecto econômico quanto pelo lado social.

O que disse o Cade?
Na nota técnica (Nº 34/2017/CGAA4/SGA1/SG/CADE), que embasa o arquivamento do inquérito e cita muitas das informações acima, o Cade argumenta que a discussão sobre o zero-rating é complexa e ocorre em escala global. "Em estudo comparativo internacional, verifica-se que não há um tratamento uniforme por parte das autoridades regulatórias. Assim, na discussão sobre a neutralidade de rede, há posições que oscilam em um espectro relativamente extenso. Desde a neutralidade radical, sem espaço para qualquer espécie de restrição ou discriminação, passando por figuras mais flexíveis, admitindo algum arranjo negocial e de cobrança, até estruturas praticamente não-neutras, no qual se permitiria múltiplas alternativas de acesso e cobrança no uso da rede", diz a nota.

Em relação ao inquérito em questão, o Cade considera que vários do planos ofertados consistem na prática corrente no mercado de "tarifação zero por escolha própria da operadora", uma vez que inexistem contratos firmados entre as prestadoras de telecomunicações e os fornecedores de aplicativos contemplados pela estratégia comercial adotada.  Já outros planos se enquadram na categoria "dados patrocinados", na qual um patrocinador arca com os custos dos dados trafegados pelo usuário final quando destinarem-se ao acesso a website específico ou utilização de determinado aplicativo. Nesse caso, as operadoras firmam contratos comerciais com os provedores de conteúdo, e são estes que pagam pelo acesso dos usuários a seus sites e aplicativos; isentando-os, assim, de qualquer custo ou consumo de sua franquia convencional.

O Cade lembra ainda que a Lei Geral de Telecomunicações estabelece, em seu Art. 6º, que "os serviços de telecomunicações serão organizados com base no princípio da livre, ampla e justa competição entre todas as prestadoras, devendo o Poder Público atuar para propiciá-la, bem como para corrigir os efeitos da competição imperfeita e reprimir as infrações da ordem econômica". E argumenta que, sob a perspectiva do sistema de defesa da concorrência, práticas verticais, como a discriminação de preços ou de condições de contratação, não são, necessariamente, ilícitos antitrustes, mas comportamento corriqueiro no mercado, motivado por várias razões de ordem prática e econômica, sendo, na maioria das vezes, conduta legítima.

Com base nessas premissas, e após a análise detalhada de cada plano denunciado pelo Ministério Público, o Cade não encontrou nenhuma prática que pudesse ser considerada anticoncorrencial nos planos ofertados pelas operadoras. Além disso, diz não ter verificado qualquer relação societária entre as operadoras e os aplicativos objeto de promoção, o que afasta um favorecimento vertical de empresas do mesmo grupo, ou observado relações contratuais de exclusividade ou remuneração entre as operadoras e os aplicativos, o que também afasta o argumento de uso do poder financeiro por alguns agentes para inibir a concorrência em seu mercado de atuação.

"No caso do acesso patrocinado, sequer há alteração na estrutura de custos, uma vez que a única diferença é a inversão do polo de cobrança. Vale apontar que outros modelos com lógica similar são totalmente admissíveis no setor de telecomunicações. Como destacado pela Representada Oi, além dos modelos de RPP (Receiving Party Pays) em que a parte que recebe a ligação assume o custo da chamada (0800, chamadas a cobrar, etc), há modelos como o da radiodifusão, aberta e gratuita, financiada exclusivamente por anunciantes (e não pelos telespectadores), e modelos de TV por assinatura, custeados por assinantes e anunciantes (e não exclusivamente por assinantes)", diz o texto da nota técnica.

No entender do Cade, é importante ter em mente que a diferenciação de planos conforme o perfil do usuário é prática legítima no setor de telecomunicações. Estes planos diferenciados são melhores para os próprios usuários, que podem escolher quais mais se adequam às suas necessidades, gerando uma maior competição entre as operadoras, e beneficiando o próprio consumidor.

Já em relação a alegada violação ao Marco Civil da Internet e ao princípio da neutralidade de rede, o Cade acompanhou o posicionamento da Anatel e do MCTIC de que as práticas analisadas não afrontam o disposto no Marco Civil da Internet e no decreto que o regulamenta.

MCTIC, Anatel e Cade alegam também que não se deve bloquear previamente ou desestimular os modelos de negócios das empresas da cadeia de Internet, que ocorrem no âmbito de relações privadas, embora isso não afaste a necessidade de monitorar tais modelos, e de tomar as medidas legais cabíveis caso seja identificada uma infração, corrigindo eventuais efeitos indesejáveis. Razão pela qual o Cade encerra a nota técnica afirmando que o arquivamento não prejudica eventual investigação futura, diante da existência de novos indícios de infração à ordem econômica a ensejar a continuidade da investigação.

Próximos passos
O Cade pode acatar ou rejeitar o recurso da Proteste. A ver.

 

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.