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Cristina de Luca

A era do uso irresponsável dos seus dados está chegando ao fim

Cristina De Luca

08/02/2019 18h52

Durante muitos anos, o lema de Mark Zuckerberg "move fast and break things" (mova-se rápido e quebre as coisas), serviu como luva para traduzir o modus operandi do Vale do Silício. Dias atrás, a Havard Business Review publicou um artigo afirmando que ele já não serve mais. E por um motivo muito simples: deixou de ser sustentável, em um mundo onde a tolerância ao uso indevido de dados, que até aqui alimentou o crescimento acelerado da economia digital, vem caindo vertiginosamente.

"A prática de ignorar as variáveis externas e os impactos externos do que você faz, focando somente na construção do seu produto, independente de qualquer outra coisa, chegou ao fim", disse André Barrence, Head of Google for Startups no Brasil, ao encerrar na última quarta-feira o evento "Segurança e Privacidade para Startups: por que deve ser seu foco em 2019", realizado pela Safernet, em parceria com o Dínamo, como parte das comemorações do Dia da Internet Segura de 2019.

Alimentada por muito tempo pelos consumidores, pelos VCs e por todo o mercado, como lembrou André, essa prática acabou. O que se espera hoje do empreendedor que trabalha  com tecnologia é muito mais do que somente a entrega de um produto sustentável e escalável. "Espera-se que esse empreendedor tenha responsabilidade pelo que faz", concluiu André.

Afinal de contas, engenheiros muitas vezes não têm capacidade para imaginar totalmente as implicações da tecnologia que desenvolvem, como já cansaram de alertar o pioneiro da Internet, Vint Cerf e o ex-CIO da FCC, David Bray. É preciso estar sendo avaliando o uso, para propor correções de rumo.

O artigo da HBR joga a responsabilidade de consertar as coisas no colo dos capitalistas de risco. Diz que cabe a eles liderar o processo de mudança dos MVPs,  de Produtos Mínimos Viáveis para Produtos Mínimos Virtuosos. Principalmente diante da expectativa de que a aplicação de tecnologias disruptivas – como a Inteligência Artificial, a Genômica, o Blockchain, os drones autônomos, a Realidade Aumentada, a Realidade Virtual e a impressão 3D, entre outras – afete a vida de uma forma  sem precedentes. Não comparável nem mesmo às mudanças provocadas pelas tecnologias dos últimos dez anos. 

O cenário futuro pede a aplicação de freios de arrumação, o quanto antes. E, em relação ao uso dos dados considerados pessoais,  eles começam a surgir na forma de legislações e regulamentos, como o GDPR e a nossa Lei Geral de Proteção de Dados (a LGPD). É preciso olhar para ambos como balizadores da inovação, e não como uma camisas de força.

E aqui vale um parêntese. Nas próximas semanas, a Câmara dos Deputados terá que lidar com a apreciação da Medida Provisória 869, que cria a autoridade Nacional de Proteção de Dados, órgão encarregado de regulamentar a aplicação da LGPD. Já foram apresentadas mais de 60 emendas ao texto da MP, e  ainda há tempo para mais. O prazo para submissão termina nesta segunda-feira, 11 de fevereiro. 

O debate mais acalorado diz respeito à garantias de independência funcional e administrativa do órgão. Recentemente, a equipe do governo federal encarregada de rever os últimos atos administrativos do presidente Temer, convocou associações de classes, como a Brasscom, para ouvir opiniões a respeito da MP. Ouviu de membros da associação que a independência funcional é um requisito indispensável à autoridade.  

Há um movimento interessante também pelo fortalecimento da figura do DPO (Data Protection Officer), o profissional responsável por aconselhar e verificar se tais empresas estão obedecendo a lei. O que nos remete de volta ao evento da Safernet e à fala do André.

Cada vez mais será cobrado das startups que, além da proteção de dados e do privacy by design, tenham uma cultura balizada por limites éticos bem definidos, que todos os seus funcionários conheçam bem e saibam que não devam ultrapassar, para evitar impactos negativos.  E todo o ecossistema no entorno delas deverá ser corresponsável, de forma a garantir que esses limites éticos sejam respeitados.

"Se você erra em algo tão crítico quanto segurança e privacidade, dificilmente você terá chance de se recuperar, reconstruir a sua reputação e voltar a empreender", prega André.

Pensei muito nisso após o evento, diante da notícia de que o Google está sendo investigado pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça por indícios de violação à privacidade dos consumidores, devido à ausência de consentimento expresso sobre a análise do conteúdo de e-mails pessoais enviados por meio do Gmail para oferta de publicidade no produto. A gigante poderá ser multada em até 9,7 milhões de reais caso os indícios de prática abusiva sejam confirmados.

Também por conta da notícia de que  o Facebook decidiu mexer no recurso "Por que estou vendo este anúncio?", que informava as pessoas sobre os critérios de segmentação usados ​​pelos anunciantes para identificá-las. Em breve, de  acordo com um relatório do TechCrunch, será possível saber também quando suas informações de contato foram enviadas; quem as enviou, se a marca ou um de seus parceiros  (agência/desenvolvedor);  e quando o acesso foi compartilhado entre os parceiros.  Em teses, essas informações nos ajudarão um pouco mais a entender as preferências de anúncios que podemos definir na nossa conta do Facebook, e removê-las da lista para deixar de ver  determinados anúncios.

São apenas dois singelos exemplos de que o jogo parece estar realmente mudando.

Ou as empresas se enquadram e começam de fato a fazer uso responsável dos nossos dados, ou a galinha de ovos dos ovos de ouro corre o risco de ir para o brejo.

Em todos os lugares do mundo, com ou sem legislação geral de proteção de dados, como o GDPR e a LGPD, mesmo apenas fazendo uso de legislações específicas, como é o Código de Defesa do Consumidor, "a proteção de dados começa a ter consequências de valor, consequências de mercado e consequências econômicas", lembra André.

Não por acaso, tem crescido nos Estados Unidos o debate sobre a necessidade de, a exemplo dos médicos, os cientistas de dados e todos os outros profissionais que trabalhem com algoritmos fazerem o Juramento de Hipócrates, uma vez que seu potencial de destruição ou de criação de valor é enorme. Só através da criação de uma espécie de Juramento de Hipócrates para profissionais de análises de dados, Michael Walker, da Data Science Association, acredita que os cientistas de dados venham a ter as bases morais e legais para se recusarem a usar dados de maneiras que ameacem violar os direitos de privacidade dos consumidores.

Concordo com o André e muitos outros que entendem que questões sobre ética, manipulação e privacidade de dados não podem mais ser consideradas simplesmente algo menor para as empresas. Daqui para frente, elas devem ser encaradas como princípios integrantes dos valores das empresas, lidem elas diretamente com os consumidores finais ou não. Afinal, por trás de todo CNPJ há muitos CPFs!

As atuais empresas líderes estão integrando suas atividades essenciais à plataformas digitais de terceiros, para fornecer serviços inovadores e melhores resultados aos seus negócios e clientes. Alavancando uma complexa rede de parceiros digitas, que transcende as fronteiras de uma única organização, elas estão projetando cadeias de valor futuras para transformar seus negócios e produtos.

Segundo Bill Gates, uma plataforma só existe quando "o valor econômico de todos que a utilizam excede o valor da empresa que a cria", e essa visão de uma verdadeira plataforma, que rege a economia digital, guiará a regulamentação futura por uma razão simples: criar valor compartilhado isola a inovação. As antigas regras do que constitui um monopólio estão destinadas a mudar. "Plataformas" ostensivamente gratuitas, como Google e Facebook, tornaram-se, com efeito, os monopólios do século XXI, opina Hemant Taneja no artigo escrito para a HBR. Concordo.

A era do uso irresponsável dos dados, não apenas por gigantes da tecnologia, está chegando ao fim. O que surgirá em seu lugar ainda não sabemos. Mas certamente  teremos que construir juntos!

Sabemos apenas que não precisamos mais viver em um mundo regido por termos de uso indecifráveis, sustentado pela ficção legal do consentimento. A licitude no uso de dados pode e deve partir das empresas. A revolução da informação está transformando e desafiando a civilização com alta intensidade. Há mais para vir; muito mais… E todos nós teremos responsabilidade no que está por vir, como criadores e/ou usuários de produtos e serviços baseados em dados.  

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.