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Cristina de Luca

Consumidor, qual valor você é capaz de extrair dos seus dados?

Cristina De Luca

23/03/2019 15h59

Essa pergunta não me sai da cabeça desde a última terça-feira, depois de assistir à palestra de Marco Pierani, diretor de Relações Institucionais e Relações com a Mídia e membro do Conselho Executivo da Euroconsumers, durante o Fórum Proteste de Proteção de Dados.  

A fala da Marco girou em torno quatro principais tendências identificadas pelos organismos europeus de defesa do consumidor em relação à Economia dirigida por dados: (1) o desequilíbrio cada vez maior do ecossistema de dados; (2) a dificuldade em regulamentar as plataformas, onde a coleta de dados se tornou massiva, e os data brokers, especializados na negociação desses dados; (3) os riscos crescentes da disseminação desenfreada de algoritmos preditivos e Machine Learning para a liberdade de escolha; e, por fim, (4) a repartição injusta da monetização e do valor criado através do tratamento dos dados dos consumidores. 

Ultimamente temos nos preocupado bem mais em como  solucionar as três primeiras tendências, esquecendo que a consciência da última é o que pode aos consumidores poder para, talvez, segundo a teses defendida pelo orador, restabelecer a confiança necessária ao reequilíbrio do ecossistema, balizamento das regulamentações (e de sua aplicação) e maior transparência no uso dos algoritmos.  Saber quais dados são coletados e como eles são monetizados é fundamental para participar dessa monetização, ou para impedi-la. 

Mas pensamos pouco em como participar da monetização. Que, a meu ver, deve ir muito além da venda ou da troca pura e simples do dado por algum tipo de benefício financeiro ou econômico. Precisa focar em boas experiências que reforcem uma relação de confiança.  E para saber quais são ela, precisamos pensar mais no rendimento que cada um de nós deseja dos dados que compartilhamos para fazer o ecossistema prosperar.

A nova cadeia de valor digital deve tornar os consumidores sujeitos ativos do emergente mercado de dados, diz Marco. Hoje, sem conhecer detalhes do que as empresas fazem com os dados que entregamos a elas, somos passivos nessa equação. Só participando ativamente dela será possível alcançar um desenvolvimento económico-social mais estável.

Por enquanto, a sensação de muitos atores econômicos é o de que o enorme volume de dados disponíveis se tornou diretamente proporcional ao desconhecimento sobre o que fazer com eles. E a ânsia de descobrir novos modelos de negócio baseados em dados tem levado alguns participantes do ecossistema a cometer abusos que, se não debelados a tempo, podem levar ao colapso do ecossistema.

Em artigo recente, publicado pelo Meio & Mensagem, Beatriz Mello, fundadora da consultoria Tropical Intelligence, explora bem essa questão do real valor do dado dentro do ecossistema, considerando a indústria criativa. Vale ler. Faço apenas uma ressalva: o valor gerado não deve ser somente para um dos lados da equação (só para os anunciantes , ou só para os consumidores). Deve ser para ambos ( anunciantes e consumidores).

Quanto aos abusos, como bem disse Marco durante sua palestra, é preciso que todos nós tenhamos consciência de que, se os dados são a nova moeda, a confiança é a sua garantia, o seu lastro. Sem confiança, corremos o risco de quebrar todo o sistema.

Armazenar as senhas dos usuários em texto simples, como descobrimos ter sido prática corrente do Facebook por um bom tempo, é um claro abuso da confiança do usuário e um exagero imprudente de confiança nos funcionários. A rede social precisa notificar todas as pessoas cujas senhas foram encontradas armazenadas dessa maneira, o quanto antes. Aliás, o anúncio da descoberta deveria ter sido feito simultaneamente à notificação.

E como se estabelece confiança?
Segundo Marco, é preciso transformar a força dos consumidores na "enzima" positiva na nova economia, de modo a promover a existência de um ecossistema digital mais equilibrado, caracterizado não apenas pelo respeito aos direitos, mas também pela capacidade do compartilhamento dos benefícios econômicos.

Considerando que nos aproximamos do início da terceira década do século XXI, Marco traça um paralelo com a crise de 29 do século passado. "De certa forma, como nos loucos anos 20 do século passado, estamos vivendo em tempos de avanços sociais e tecnológicos particulares. Esses ciclos novos e recorrentes da história também deveriam nos levar a prestar atenção particular aos riscos inerentes de um crise econômica sistêmica, como a que levou à Grande Depressão de 1929, quando os clientes retiraram maciçamente suas economias dos bancos", diz ele.

Em 29, a crise de confiança no sistema financeiro quebrou os bancos. Agora, a crise de confiança nas plataformas de compartilhamento de dados e nos sistemas responsáveis por seu tratamento, pode fazer com que aconteça o mesmo em relação à autorização para o processamento de dados.

Será?

Na opinião de Marco, sim, se não conseguirmos equilibrar os direitos fundamentais dos cidadãos/consumidores e a liberdade empresarial, de modo a corrigir o atual desequilíbrio do ecossistema de dados. Sem confiança, a tendência é sermos cada vez mais restritivos, desautorizando mais o uso do que autorizando.

E os mercados precisam cada vez mais dos fluxos de dados!

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Em tempo
Vale ler a entrevista que a jornalista Paula Soprana fez esta semana com Stefano Quintarelli, integrante do grupo de inteligência artificial da Comissão da União Europeia, sobre como a Internet mudou o conceito de propriedade privada.  

Em fevereiro, Quintarelli lançou o livro "Instruções para um futuro imaterial" (Editora Elefante, 304 páginas). No prefácio,  o conselheiro do IT&E, Ricardo Abramovay e o advogado Rafael Zanatta, ressaltam que, para Quintarelli, há uma urgência de compreender o tipo de economia gerada pelo avanço tecnológico, seu impacto social e as possibilidades de regulação. De certo modo, o livro retoma uma velha lição de Spinoza: non ridere, non lugere, neque detestare, sed intellegere. Nem rir, nem chorar, nem detestar, mas sim compreender. Só assim será possível encontrar o que eles chamam de "vacina para o desencantamento digital".  E, ouso dizer, também aquilo que Marco Pierini define como equilíbrio entre a intermediação algorítmica (que tende ao monopólio ou ao oligopólio) e o controle dos consumidores sobre seus dados (capaz de restaurar a  competição).

Quintarelli enxerga na retomada da titularidade dos dados pessoais e na ampliação da regulação da concorrência o caminho para recuperarmos a descentralização da Internet, hoje dominada pelas grandes plataformas.

A ideia central desses pensamentos é a de que a luta pela valorização da privacidade precisa andar junto com a luta pela valorização da concorrência. E tanto a defesa da privacidade, quanto o aumento da concorrência, passam por um conhecimento maior do fluxo de dados e pelo reconhecimento da noção de mercado.

Precisamos de mais  cooperação para construir uma economia digital que seja sustentável, inclusiva e confiável.

Como tem pregado o Fórum Econômico Mundial, a quantidade de dados que mantém a economia digital fluindo está crescendo exponencialmente. Até 2020, haverá mais de 20 bilhões de dispositivos conectados globalmente. No entanto, não há consenso sobre se os dados são um tipo de moeda nova para as empresas comercializarem ou um bem público comum que precisa de regras e proteção mais rigorosas. A economia digital e a sociedade devem preencher essa lacuna desenvolvendo inovações que permitam que a sociedade se beneficie dos dados e, ao mesmo tempo, proteja a privacidade.

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Vale ler também…
O livro Radical Markets, de Eric Posner e Glen Weyl.

Glen estará em um debate no dia 4 de abril, na Faculdade de Direito da Usp, sobre o "data labor movement".

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.