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Cristina de Luca

A legislação antitruste levará a uma versão mais ética do tecnocapitalismo?

Cristina De Luca

14/05/2019 21h28

Esta semana um debate contemporâneo esquentou de vez nos Estados Unidos: como aplicar a legislação antitruste americana à economia digital?

Foram dois os estopins:

Os questionamentos partiram de analistas e jornalistas que acompanham o que já se convencionou chamar de tecnocapitalismo, usando argumentos que dão a exata dimensão dos desafios que os legisladores e os tribunais terão pela frente.

"A teoria antitruste, tanto do lado do diagnóstico como do lado do remédio, parece desconcertada quando confrontada com produtos que são gratuitos ou baratos, e que não dependem de tipos familiares de práticas restritivas pelo seu poder de mercado", diz Benedict Evans, sócio de Marc Andreessen e Ben Horowitz na empresa de venture capital Andreessen Horowitz.

Em sua newsletter semanal, Ben Evans lembra que as grandes decisões antitruste americanas se concentram exclusivamente no preço, enquanto na União Europeia (UE) as decisões consideram outras questões concorrenciais. E que, ainda assim, seja na América ou na Europa, nenhuma das leis nas quais foram baseadas as grandes decisões antitruste teriam uma boa explicação do que exatamente está errado com Facebook, Apple e Amazon, por exemplo.

Não se pode dizer o mesmo do Google e das sanções imputadas pela UE por práticas anticompetitivas envolvendo o Google Shopping, o ecossistema Android e, mais recentemente, o AdSense.

Vale lembrar que, no início deste ano, a União Europeia aprovou uma legislação que pretende acabar com práticas desleais em plataformas online e lojas de aplicativos. Apesar da aprovação de negociadores de países europeus, do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia, a lei só entrará em vigor após o respaldo dos países da União Europeia, que avaliarão individualmente as novas regras.

Se os americanos tivessem uma lei semelhante, a Apple estaria em maus lençóis.

App Store, monopolista?
Na decisão desta semana, a Suprema Corte americana afirma que clientes têm direito a processar a Apple pela comissão de 30% que ela cobra dos desenvolvedores que desejem vender aplicativos na App Store.

O caso começou como um processo judicial coletivo apresentado em 2011. Os queixosos, liderados por Robert Pepper, argumentaram que a Apple havia monopolizado ilegalmente a venda de apps para o iPhone, ao exigir que seus clientes recorram à App Store.

O processo foi recusado por um tribunal federal de primeira instância na Califórnia, mas a decisão foi revertida posteriormente por um tribunal de recursos. Em 2017, a Apple apresentou  um apelo à Suprema Corte, solicitando que ela impedisse o processo com base em um precedente estabelecido em 1977 no caso da Illinois Brick, cuja decisão dispunha que apenas os compradores diretos de um produto tinham direito a solicitar indenização triplicada em caso de inflação de preços, nos termos das leis antitruste federais dos Estados Unidos.

Embora tenha mais de uma década, o caso da Apple ainda está em estágio inicial. O mérito da acusação, de que a Apple violou as leis antitruste em sua App Store, ainda não foi analisado. Por isso, a fundamentação do juiz da Suprema Corte foi encarada como um indício do a Apple deve esperar.

Ben Thompson, editor da newsletter "Stratechery", abordou didaticamente a questão envolvendo a doutrina antitruste, a possibilidade de App Store ser encarada com um monopólio, e as consequências que essa disputa  pode ter, não só para a Apple como também para outras empresas que operam mercados online.

O juiz juiz Brett Kavanaugh parece ter concordado com a tese de que os consumidores são diretamente prejudicados pelas alegadas práticas monopolistas da Apple, por conta da seguinte cadeia de valor desenhada por Ben Thompson, a partir dos argumentos dos autores da ação.

Os autores da ação alegam que os aplicativos seriam mais baratos se os desenvolvedores de software pudessem vendê-los diretamente e ignorar a Apple como intermediária.

O argumento da Apple em sua petição é o de que a cadeia de valor é um pouco diferente, uma vez que "a Apple não compra e revende aplicativos".

Ben Thompson não acredita que os desenvolvedores estejam sendo prejudicados pelas políticas da Apple, nem que as políticas são ilegais. E a Suprema Corte não chegou a se debruçar sobre essas questões. Mas ainda vamos ouvir falar muito a respeito. Inclusive porque essa não é a única contestação judicial que a Apple enfrenta em relação ao modelo de operação da App Store.

Em março deste ano, o Spotify apresentou uma queixa antitruste contra a Apple na Europa, argumentando que ela age de forma desleal ao promover seu próprio serviço de música na App Store. A UE deve abrir uma investigação sobre o assunto, segundo reportagem recente do Financial Times. A Apple rejeita as acusações.

E a divisão do Facebook?
Em relação ao texto de Chris Hughes, é bom que se diga que a preocupação com o poder excessivo de Mark Zuckerberg e com o domínio de mercado do Facebook não chega a ser uma exclusividade do seu ex-sócio. Mais gente está convencida de que os algoritmos do Facebook, e de suas subsidiárias Instagram e WhatsApp, determinam o que seus milhões de usuários veem online, e podem ser usados para inibir a atuação de seus rivais.

Vejamos.

Impedir a junção dos serviços para tentar reduzir o poder de mercado do Facebook é o mantra da associação Freedom from Facebook. Também é uma das principais bandeiras da senadora Elizabeth Warren (D-MA).

Warren defende o princípio da "neutralidade de plataforma" (que proíbe as gigantes da tecnologia de fornecer uma plataforma e vender produtos de sua propriedade através dela) e a nomeação de novos reguladores capazes de impedir as fusões entre grandes empresas de tecnologia sob alegação de que essas fusões sufocam a concorrência e minam a democracia.

"Congressistas democratas e republicanos já estão de acordo, e agora os CEOs da Fortune 500 estão se juntando ao co-fundador do Facebook, Chris Hughes, para pedir regulamentações mais rígidas sobre o conglomerado", disse hoje Sarah Miller, co-presidente da Freedom From Facebook, em referência à divulgação nesta segunda-feira, pela Fortune, de uma pesquisa revelando que metade dos CEOs de empresas de lista Fortune 500 acha que o Facebook é muito grande e precisa ser regulamentado.

Resultados da mesma pesquisa revelam ainda que 41% dos CEOs são favoráveis a regulamentações adicionais para a Amazon e 39% para a Alphabet (controladora do Google). Em compensação, apenas 5% são favoráveis a um aumento de regulamentação para a Microsoft e 6% para a Apple.

Em um comunicado, no qual responde o texto de Hughes, o Facebook também reconhece a necessidade de prestação de contas, mas refuta a ideia de que deva ser dividido: "A responsabilidade das empresas de tecnologia só pode ser alcançada através da introdução meticulosa de novas regras para a internet."

Quais seriam elas? E por que a divisão do Facebook deveria estar entre elas? É aí que os questionamentos de Bem Evans e da editora do site "The Information", Jessica Lessin, provocam, certa inquietação.

Hughes disse que a concentração de poder do Facebook não se limita apenas à empresa de mídia social: é uma tendência mais ampla dentro do Vale do Silício. E que, embora tenhamos as ferramentas para controlar o Facebook por meio de regulamentação, não há a vontade real de fazê-lo. Ben Evans concorda.

Segundo Evans "há uma tendência a confundir preocupações sobre o tamanho absoluto e o poder de mercado das gigantes da internet (discutíveis, é claro) com preocupações com problemas específicos como privacidade, radicalização e bolhas de filtro, disseminação de conteúdo nocivo, acesso da lei a mensagens criptografadas e assim por diante, incluindo até a curadoria de lojas de aplicativos. Na sua opinião, desmembrar o Facebook não teria efeito algum sobre a desinformação disseminada via WhatsApp, os problemas de assédio do Instagram e o conteúdo abusivo que continua a circular no feed de notícias da rede social. Da mesma forma, separar o Youtube do Google não resolveria a radicalização do discurso. "Então qual problema estamos tentando resolver?", pergunta ele.

Já Jessi Lessin vê no ponto alto do texto de Hughes _ suas reflexões pessoais em torno de Zuckerberg e seu poder _ também sua maior fraqueza quando se trata de argumentar que o Facebook deve ser desmembrado. "O propósito da lei antitruste dos EUA não é destituir déspotas; é preservar a concorrência", escreve ela. "Hughes não oferece nenhum argumento convincente de que romper a empresa irá corrigir os abusos e negligências que ele tão corretamente identifica", sustenta.

Evidências! Elas são o coração das ações antitruste
"Para argumentar que os consumidores estariam melhor sem um grande Facebook, Hughes precisa fazer mais do que convencer os políticos de que Zuckerberg é onipotente. Ele deve provar que o Facebook viola a lei antitruste", comenta Lessin.

"Há uma nova vertente de teoria antitruste emergente que se concentra mais na ideia de que o poder é ruim. Mas essa ideia, apoiada por Elizabeth Warren e outros, ainda não foi testada", ressalta a jornalista.

A eleição de 2020, lá nas terras do norte, é o combustível que pode inflamar essa fogueira!

Uma nova legislação antitruste, mais próxima do entendimento europeu, tem chances de emplacar? Quantos americanos estão de fato preocupados com o tamanho do Facebook, ou quantas empresas formam o império de Mark Zuckerberg e quão poderoso ele é?

Os próximos meses dirão!

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.