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Cristina de Luca

Três análises sobre a criptomoeda do Facebook que você precisa ler

Cristina De Luca

25/06/2019 17h35

O Facebook finalmente anunciou seus planos para uma criptomoeda digital, baseada em uma rede blockchain. O anúncio da Libra foi o assunto da semana, e ainda hoje, uma semana depois, continuam a ser publicadas análises técnicas ressaltando questões que passaram despercebidas no primeiro momento, como o esforço requerido do Facebook para superar a desconfiança do público e do mercado no seu modelo de criptomoeda; a gestão segura da identificação dos usuários; e a verdadeira disrupção que a entrada das BigTechs pode provocar no mercado financeiro, superando a atuação das Fintechs.

Como a Libra não será lançada até o próximo ano, há muito tempo para esses e outros aspectos sejam considerados pelos reguladores e pelo consórcio independente  que a controlará, formado por dezenas de empresas de finanças e tecnologia, além de alguns investidores.

Confiança
Sabemos que a privacidade de dados é um dos temas mais importantes que impactam a indústria e há uma crescente preocupação em como o Facebook obterá o consentimento dos correntistas para o compartilhamento de dados com a Calibra, dado o fraco histórico da empresa em relação à coleta e uso de dados pessoais para publicidade.

O Facebook diz que seu serviço de carteira digital – Calibra – será uma subsidiária regulada pelo governo dos EUA e afirma que não usará dados de Libra para publicidade direcionada.

Há de fato muita preocupação dos consumidores e dos reguladores com a possibilidade de nossa identidade digital se fundir com os dados financeiros de Libra. Mas não só.

Para que a criptomoeda prospere, será preciso fazer com que o mercado confie no modelo montado para validar as as transações, já que a Libra Association pretende incentivar "formas descentralizadas de governança".

Há também outro componente de confiança: o de que o valor da Libra será estável. Ou seja, que a Libra, como uma "stablecoin", com valor atrelado a uma cesta de moedas e outros ativos, não flutuará tanto como o BitCoin.

O Facebook também terá que buscar a confiança dos reguladores de que a sua carteira Calibra pode cumprir as leis contra lavagem de dinheiro e proteção de dados, exigindo IDs emitidos pelo governo para verificar uma conta.

E, por fim, os comerciantes terão que acreditar que a Libra será mais barata e mais fácil de usar, mais acessível e mais flexível que os cartões de crédito.

Sobre confiança vale ler a análise do Quartz.

Identidade
Um ponto que começa a chamar muita atenção em relação à Libra é o fato de a Libra Association estar disposta a criar um novo padrão aberto de identificação digital.

"Acreditamos que a identidade digital descentralizada e portátil é um pré-requisito para a inclusão financeira e a concorrência", diz o texto que descreve a Libra, sem no entanto dar muitos detalhes sobre como isso será feito. Nem como o Facebook e a Libra Association superariam alguns dos grandes desafios técnicos que impediram os sistemas de identidade baseados em Blockchain de prosperar.

O conceito (às vezes chamado de "identidade auto-soberana") é algo como um santo graal no mundo da tecnologia da internet, e os desenvolvedores vêm perseguindo isso há anos.

Para os entusiastas do Blockchain, a identidade digital é um dos usos mais tentadores para a tecnologia, ainda por realizar. A ideia envolve o desenvolvimento de credenciais portáteis que funcionem permitindo acesso contínuo a todos os tipos de aplicativos. Os grandes argumentos são os de que essa identidade seria vantajosa para a privacidade, porque ninguém poderia acompanhar a atividade de ninguém na internet, e ajudaria a conter grandes vazamentos e hacks, já que grandes quantidades de dados de usuários seriam menos prováveis ​​de serem armazenados em um único lugar.

No ano passado a Microsoft apresentou sua visão de uma "identidade digital auto-soberana", junto com parceiros do calibre da World Wide Web Consortium e da Decentralized Identity Foundation, que tem entre seus membros a Aetna, a IBM e a Mastercard.

Em artigo publicado esta semana na Folha de São Paulo, o advogado e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, Ronaldo Lemos, ressalta que há hoje uma verdadeira corrida no mundo para ver quem vai ser capaz de certificar a identidade de usuários digitalmente, com validade na rede e fora dela.

A Libra seria mais uma prova de que está começando a surgir uma dicotomia global entre serviços internet nos quais os usuários são identificados (precisam que sua identidade seja certificada) e nos quais os usuários são indeterminados. Isso por que a medida em que a internet vai se transformando cada vez mais em uma rede na qual trafegam transações financeiras e outras funções críticas, reforçar a camada de autenticação dos usuários começa a se tornar primordial.

Vale lembrar que o Facebook mudou fundamentalmente a forma como interagíamos online, especialmente porque os usuários conseguiam criar representações digitais de si mesmos. Antes, os usuários eram na maior parte anônimos online. O Facebook foi a primeira plataforma amplamente aceita para criar identidades digitais.

E que Mark Zuckerberg já provou ser um grande estrategista quando se trata de detectar tendências e conquistar concorrentes (potenciais). As aquisições do Instagram e WhatsApp são bons exemplos.

Uma próxima grande ameaça em potencial pode vir na forma de uma "rede social" descentralizada e consciente da privacidade, algo semelhante ao que Libra poderia se tornar em algum momento no futuro, com pagamentos como caso de uso mais óbvio.

Pense: e se os usuários não fossem "o produto", mas fossem pagos em suas interações com profissionais de marketing, empresas e organizações?

Na conferência da Techonomy NYC, em maio de 2017, o sempre instigante investidor de risco Fred Wilson, argumentou que "o modelo de negócios mais disruptivo"  à publicidade seria baseado em recompensas. A Libra abre caminho para que algo assim aconteça.

A ver.

Sobre identidade recomendo ler a análise de David Kirkpatrick, fundador e editor-chefe da Techonomy Media.

BigTechs e Finanças
Ninguém discorda que proporcionar acesso financeiro a pessoas em todo o mundo parece uma evolução positiva para a humanidade. Por isso, muita gente elogiou os planos do Facebook de democratizar o setor bancário. Mas muitos advertiram também que isso deve ser feito de uma maneira extremamente cuidadosa.

Na opinião do Bank for International Settlements (o BIS, o banco central dos bancos centrais), gigantes da tecnologia, como o Facebook, poderiam "rapidamente estabelecer uma posição dominante" nas finanças globais e representar uma ameaça potencial à concorrência, estabilidade financeira e bem-estar social.  Isso porque as BigTechs poderiam trazer mais pessoas para o sistema financeiro formal. O que exigiria novos tipos de regulamentação, como maior foco na privacidade de dados.

As grandes empresas de tecnologia têm vastas redes de usuários e imensos repositórios de dados que poderiam ser usados ​​para avaliar a qualidade de crédito, por exemplo, promovendo a inclusão financeira, ou produzindo "efeitos econômicos e sociais adversos", discriminando preços, calculando a taxa máxima que um tomador estaria disposto a pagar por um empréstimo.
E aqui cabem dois parênteses:

  • Executivos de Wall Street há muito se preocupam com os modelos de negócios de tecnologia centrados em dados que atrapalham o sistema bancário tradicional.
  • E ainda nã há hoje consenso global sobre como regular moedas digitais, ou como mitigar os problemas que podem se esconder em sistemas de pagamento anônimos ou peer-to-peer.

O BIS recomenda aos reguladores tratar a entrada das BigTechs nos serviços financeiros cuidadosamente, aproveitando os ganhos e limitando os riscos.

"O papel da Big Tech nas finanças introduz muitos elementos novos e muito desconhecidos que nos forçarão a dar uma nova olhada em algumas das atividades que os formuladores de políticas internacionais realizam", disse Hyun Song Shin, assessor econômico e chefe de pesquisa do BIS.

Na opinião dele, os reguladores precisarão decidir como a atividade do Facebook será enquadra nas categorias existentes e regulamentadas. "Mas não devemos descartar uma nova abordagem que se encaixe melhor", disse.

Uma questão crucial, por exemplo, é como a Libra vai interagir com os bancos tradicionais.

"O Facebook e seus parceiros decidirão com quais bancos, processadores de pagamento e agentes de distribuição trabalharão, fazendo ou quebrando empresas em alguns mercados da noite para o dia. Isso entrincheirará os participantes existentes em vez de criar um sistema verdadeiramente descentralizado", escreveu o co-fundador do rede social, Chris Hughes, em um editorial publicado no Financial Times.

Pense em como o Facebook, a Amazon, a Netflix e o Google derrubaram setores como publicidade, varejo e televisão. Farão o mesmo com os bancos?

Por enquanto, os analistas acreditam que o Facebook precisará jogar bem com os bancos, pelo menos no começo, dando a eles um pedaço do bolo.

Será?

Sobre a incursão das BigTechs nos serviços financeiros vale ler a análise de Fábio Lacerda Carneiro, chefe adjunto no Banco Central do Brasil.

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.