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Cristina de Luca

Brasil é terreno fértil para a evolução dos pagamentos instantâneos

Cristina De Luca

19/10/2019 16h34

Já ouviu falar em pagamento instantâneo? Sabe o que é? Provavelmente… Os pagamentos com QR code ficaram famosos na China, e o Brasil tem a oportunidade de torná-los ainda mais revolucionários. Não acredita?

Vamos lá, começando pela definição…

De acordo com o BIS (Bank for International Settlements), o Banco Central dos Bancos Centrais, os pagamentos instantâneos são aqueles em que a transmissão da mensagem de pagamento e a disponibilização dos recursos para o usuário final são realizadas em tempo real (ou quase em tempo real, aproximadamente 20 segundos), 24 horas por dia e sete dias por semana (24×7). Isso porque ele conecta diretamente as duas pontas, quem paga e quem recebe.

No Brasil, em maio do ano passado o Banco Central iniciou o ambicioso projeto de trazer pagamentos instantâneos para o país. Quem acompanha de perto esse trabalho, e a regulamentação do chamado open banking, diz que aumentar a competição no setor bancário tem sido o principal norte das decisões tomadas até aqui.

"Estamos prestes a ter um ambiente de hipercompetitividade no setor bancário", diz Carlos Netto, executivo-chefe da Matera, fornecedora de uma plataforma de serviços financeiros.

A promessa do BC é criar regras que permitam agilidade na troca de dados, sem que os bancos, hoje guardiões das informações, possam criar barreiras artificiais para impedir que ela ocorra. E, consequentemente, fazer com que uma enorme variedade de soluções facilitadoras de transações bancárias entre pessoas, estabelecimentos comerciais, empresas e até entre esses três atores e o governo, possam surgir e prosperar. Um dos objetivos é que se possa, inclusive, pagar impostos ou receber benefícios sociais por meio da plataforma de pagamentos instantâneos, por exemplo.

O fornecedor do serviço poderá ser um banco, claro, mas também um varejista, uma empresa de tecnologia, as fintechs, uma concessionária de serviços de energia ou telecomunicações, bastando para isso ter uma subsidiária instituição de pagamentos. O sistema será aberto a vários "players". E as soluções deverão ser interoperáveis e ter estrutura de governança bem definida, que prevejam acesso e tratamento igualitário a todas as instituições financeiras e instituições de pagamento participantes do ecossistema.

De cara, o cenário no qual esse ecossistema se desenvolverá parte de 151 fintechs de pagamentos, 12 bancos digitais e 12 fintechs multisserviços, segundo o último levantamento do Fintechlab. Somados aos outros 45 bancos brasileiros, aproximadamente, estamos falando de 220 potenciais provedores de serviço de pagamentos instantâneos.

Isso sem contar os marketplaces do comércio eletrônico e as grandes cadeias varejistas, que podem fazer esse número praticamente dobrar… Imagine que todo grande varejista que hoje trabalhe com o cartão da própria loja possa vir a operar como uma fintech, através da oferta de conta própria e distribuição de produtos/serviços financeiros de terceiros, estreitando ainda mais o relacionamento com o cliente.

"A ficha do mercado ainda não caiu. O pagamento instantâneo vai dar conectividade e liquidez para todas as contas do Brasil, independente dela ser conta de bancão ou conta de fintech. O BC vai nivelar o jogo e o brasileiro terá muitas opções", comenta Carlos Netto, para quem o pagamento instantâneo é um forte candidato a substituir todos os instrumentos de cobrança que a gente tem no Brasil. "O próprio boleto pode morrer", diz.

"A experiência do usuário final será fator determinante na diferenciação e fidelização das soluções", comenta Débora Figueredo, gerente de Sinqia Consulting, em artigo recente.

"Pensar a estratégia de entrada, muito além da simples disponibilização de forma de aceitação, dar a devida atenção às necessidades do usuário final, estar pronta para desenvolver e integrar APIs, navegar com segurança no universo digital e se antecipar a temas paralelos, como open banking e LGPD podem ajudar as instituições a iniciar sua jornada muitos passos à frente da concorrência", completa.

Mas os intermediários não iam sumir?

Todas as instituições participantes do ecossistema não chegam a ser exatamente intermediários. Elas serão prestadoras de serviços de pagamento, que administrarão carteiras/contas transacionais. Afinal de contas, porque o dinheiro terá que continuar indo do ponto A para o ponto B. "O que deve ocorrer é uma relação mais direta, menos burocrática", diz Carlos Netto. A transferência de recursos será feita pelo celular, por meio do aplicativo do prestador de serviço de pagamento (PSP) de preferência do consumidor, que poderá ter mais de um, inclusive como já acontece hoje com os cartões de crédito.

Quem pode se ver em maus lençóis, com o passar do tempo? Os adquirentes como as empresas de maquininhas de cartão. Por que com o pagamento a vista, uma das maiores fontes de receita do adquirente, que é a antecipação do pagamento, acaba. O lojista pode prescindir das máquinas de POS para receberem pagamentos instantâneos, cujo custo será mais baixo.

"Perde quem é transferidor de dinheiro e ganha quem controla a origem e o destino do dinheiro", resume Carlos Netto, executivo-chefe da Matera.

Neste aspecto, é esperado um grande impacto também nos serviços de pagamentos que hoje dependem de intermediários, como recarga de pré-pago, recarga de cartão de transporte, vale-refeição, etc.

E os cartões de crédito? Bom, o que manterá o cartão vivo ainda por um bom tempo são serviços que ele presta. Que não estarão mais à disposição apenas dos bancos emissores.

"O cartão é aquele cara que fica agrupando várias compras para mandar um boleto, todo o mês, para gente pagar… Se o usuário não pagar em dia, o lojista não sai no prejuízo. O banco emissor vai honrar o pagamento pois ele assumiu o risco do crédito. O banco emissor é o principal fator no ecossistema, mais que a bandeira que emite o cartão para a loja. Sem ele, a operação não ia existir", explica.

A bandeira do cartão também tem mecanismos de seguro de crédito e cartas fiança que garantem que o lojista irá receber no final, por exemplo. "Além disso, as bandeiras são globais! Se você for aos Estados Unidos, eles não vão conhecer o emissor brasileiro, mas vão conhecer a Visa e a Mastercard", afirma Carlos Netto.

"A gente tem uma visão muito otimista em relação ao pagamento instantâneo", afirma Guilherme Esquivel, diretor de pagamentos digitais da Mastercard no Brasil. "Se a gente olhar hoje para o percentual do consumo das famílias que acontece por meio de pagamentos eletrônicos vai ver que ele está chegando agora na casa dos 40% aqui no Brasil. Comparado com o percentual de países europeus, como a Suécia, onde bate 80%, a gente vê que tem muito para avançar".

"Então nós consideramos que qualquer cenário que permita maior eletronificação é positivo. O posicionamento da Mastercard é tornar mais eficiente toda essa cadeia de pagamento, qualquer que seja o mecanismo eletrônico utilizado, inclusive saindo só do mundo cartão", diz ele. "Nós queremos ser uma plataforma tecnológica de transações".

De fato, a empresa vem fazendo investimentos consideráveis, globalmente, adquirindo empresas que permitam transações em tempo real. Uma dessas aquisições foi a parte de serviços de compensação, pagamento instantâneo e soluções de faturas eletrônicas do negócio de serviços corporativos do grupo escandinavo Nets, em agosto, por cerca de US$ 3,19 bilhões. Em julho a Mastercard já havia adquirido 92,4% do capital da VocaLink Holdings, empresa que gere plataformas eletrônicas de pagamento no Reino Unido, com experiência em open banking.

"A ideia é ter no portfólio o maior número possível de soluções de prateleira para pagamentos eletrônicos para atender o mercado B2B", comenta Esquivel. A empresa decidiu inclusive deixar de incentivar o uso da sua própria carteira eletrônica, para apoiar clientes que esteja desenvolvendo as suas próprias soluções de carteiras eletrônicas, que já possuam ou distribuam soluções, como Apple, Google e Samsung, por exemplo. "Se um banco resolver ter uma carteira eletrônica e precisar de uma plataforma para isso, nós podemos ser um provedor", explica o executivo.

No modelo que vem sendo criado pelo Banco Central para pagamentos instantâneos no Brasil, a Mastercard vê a sua participação como um consultor na modelagem de potenciais provedores de serviços que a cadeia vai requerer.

"O papel exato a gente ainda está tentando definir. A gente ainda não tem clareza sobre qual será o modelo econômico. O próprio BC também não tem. Mas a gente acredita que possa, minimamente, criar a premissa de interoperabilidade com os demais sistemas. Em algum momento, em uma fase futuro, a cadeia de pagamentos instantâneos pode interoperar com outros serviços. Por exemplo, transferir recursos dessa plataforma gerida pelo Banco Central para um carão pré-pago, de um determinado consumidor", completa Esquivel.

Todos sabem que, para alcançar os resultados desejados, será necessário que a rede brasileira de pagamentos instantâneos ganhe escala. O que vai depender da ampla adesão dos interessados nas duas pontas (pagadores/recebedores e potenciais prestadores do serviço.

"O grande desafio da indústria agora é, sabendo que tem ainda muito espaço para todo mundo, em que situação vai fazer sentido um meio pagamento como cartão, em que situação vai fazer sentido o pagamento instantâneo, que é basicamente uma transferência entre contas", comenta Esquivel, lembrando que ainda não está claro o que vai acontecer se o consumidor se arrepender de uma compra. Hoje se estorna o pagamento no cartão. Mas no caso do pagamento ter caído direto na conta do vendedor, como é quele vai devolver o pagamento?

"Toda transação comercial pressupõe a possibilidade de um desacordo. Então tem algumas característica do modelo transacional que pode complicar a questão do chargeback [estorno]. Todo esse arcabouço do pagamento instantâneo ainda está em processo de definição. A plataforma vai ser muito mais abrangente que um TED ou um DOC. E provavelmente vai absorver os pagamentos de pequeno valor, no long tail [cauda longa] do varejo. Se ela for escalável, pode haver alguma captura de outros tipos de transação no varejo. Mas acredito que ainda tenha um tempo de maturação até lá, capaz de substituir as vantagens que a infraestrutura de cartões provê hoje", opina Esquivel.

Está algo que talvez caiba mais aos órgãos de defesa do consumidor arbitrar, já que o pagamento instantâneo não tem nenhuma diferença do pagamento em dinheiro.

Diferenças do modelo brasileiro

O Banco Central espera o desenvolvimento de soluções pelo próprio mercado, nas diversas camadas, e para isso assumiu um papel ativo também no provimento da infraestrutura. O que já vem sendo considerada uma das diferenças do modelo brasileiro em relação ao pagamento instantâneo em outros países. O uso de blockchain foi descartado e o BC decidiu desenvolver e gerir a base de dados de endereçamento centralizada que suportará o ecossistema de pagamentos. A plataforma completa deverá ser lançada em novembro do ano que vem, data proposta pelo BC para se iniciar uma primeira fase de transações.

Outra característica relevante do modelo brasileiro é, por exemplo, o fato de que ele terá dois modelos de QR code, um deles com duas variações: o lido pelo pagador, que pode ser estático ou dinâmico e o gerado pelo pagador (para ser apresentado, que está sendo chamado pelo BC de "QR Code Gerado pelo Pagador"). Esse último permitirá iniciar o pagamento de um bem ou serviço mesmo que o celular do pagador esteja desconectado. Basta que o receptor tenha conexão.

Algo importante, uma vez que, o EY Open Banking Opportunity Index comprovou que lacunas significativas na infraestrutura, como a baixa qualidade das conexões internet, são críticas para o futuro do open banking e dos pagamentos instantâneos no Brasil. Esse QR code gerado pelo pagador endereça essa questão.

Além disso, outra decisão recente do BC deverá baratear bastante o custo total do sistema, ajudando a popularizar o pagamento instantâneo: a possibilidade de ter vários pagamentos por mensagem.

"Serão dezenas de milhares de transações por segundo. A infraestrutura para aguentar isso é enorme. Entretanto, um grande banco não precisará enviar cada pagamento de cada cliente, um por vez. Ele pode esperar um período de 0,2 segundos e enviar todas as transações realizada nesse intervalo de tempo em uma única mensagem", explica Carlos Netto.

"Isso gera um atraso médio de 0,1 segundos em cada pagamento, o que é aceitável, mas garante que o banco, que poderia ter que enviar milhares de mensagens por segundo, enviará apenas 5 mensagens por segundo.  Os requisitos de infraestrutura despencam. O consumo de rede cai. Como o BC vai repassar custo para os participantes, isso vai fazer a transação ser mais barata para eles, que poderão cobrar menos dos clientes", completa.

Para chegar a essas definições o BC ouviu o mercado e estudou detalhadamente aspectos positivos e negativos dos modelos de negócio de soluções de pagamento instantâneo já implementados, ou em fase de desenvolvimento, em diversos países e regiões, como EUA, México, China, Singapura, União Europeia, Reino Unido, Suécia, Dinamarca, Índia e Austrália. Cada experiência tem suas próprias características e idiossincrasias que não se prestam a ser transportadas ou copiadas.

Faltam definições em relação à segurança, por exemplo. Como será a autenticação no sistema? Uma alternativa em estudo é o uso do número de celular de cada pessoa para o cadastro neste sistema (no lugar do login); mas um desafio é a troca constante de números de celulares entre os brasileiros.

Faltam também definições sobre liquidação não prioritária.  E a resposta aguardada por todo mercado para a pergunta "qual será o preço a ser pago ao BC por cada transação de pagamento instantâneo pelo uso da infraestrutura do sistema".

Desde a publicação do Relatório de Vigilância do Sistema de Pagamentos Brasileiro 2013, o BC vem incentivando o desenvolvimento de um arranjo de pagamentos, de amplo acesso, que possibilite a realização de pagamentos instantâneos. Em 2018, o BC decidiu iniciar, efetivamente, os esforços para o desenvolvimento de um arranjo de pagamentos instantâneos brasileiro de amplo acesso. O passo inicial foi a criação de grupo de trabalho específico, com participação do BC e de agentes do mercado, denominado GT Pagamentos Instantâneos.  O GT encerrou seus trabalhos no dia 21 de dezembro de 2018, com a divulgação do Comunicado nº 32.927 e do documento com a versão final dos requisitos fundamentais para o ecossistema de pagamentos instantâneos brasileiro.

De forma a dar continuidade à interação com os agentes de mercado e com potenciais usuários, o BC instituiu o Fórum para assuntos relacionados a pagamentos instantâneos no âmbito do SPB – Fórum PI, que conta com cerca de 200 instituições participantes. Consistindo em um comitê consultivo permanente, o Fórum PI tem como objetivo subsidiar o BC em seu papel de definidor das regras de funcionamento do ecossistema de pagamentos instantâneos. Existem três grupos de trabalho temáticos no âmbito do Fórum PI: GT Negócios, GT Padronização e Requisitos Técnicos e GT Mensagens PI. Eles ajudarão a definir as regras que faltam.

Até porque, a implantação do sistema será faseada. No ano que vem entra em operação a primeira das quatro fases previstas pelo BC. Temos muito que caminhar!

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.