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Cristina de Luca

Brasil dá dois passos importantes para desenvolver sua economia digital

Cristina De Luca

15/12/2019 09h03

Foto: Shutterstock

Neste início de dezembro, o Brasil deu passos indispensáveis para o desenvolvimento da economia digital, em duas frentes: a proteção de dados e a inteligência artificial (IA).

No Congresso, a Comissão Especial sobre Dados Pessoais encarregada de analisar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 17/19, que insere a proteção de dados pessoais na lista de garantias individuais da Constituição, aprovou o substitutivo apresentado pelo relator, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP). O projeto segue agora para o Plenário, onde precisa ser votado em dois turnos.

Já no Poder Executivo, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) abriu uma consulta pública para coletar subsídios à elaboração da Estratégia Nacional de Inteligência Artificial. Até 31 de janeiro de 2020, todos nós poderemos contribuir respondendo as questões distribuídas por seis eixos verticais (Educação e capacitação; Força de trabalho; Pesquisa, desenvolvimento, inovação e empreendedorismo; Aplicação pelo governo; Aplicação nos setores produtivos; e Segurança pública) e três eixos transversais (Legislação, regulação e uso ético; Aspectos internacionais; Governança de IA).

Vale lembrar que essa consulta pública se somará em 2020 a outra iniciativa em Inteligência Artificial que deve ser lançada em breve pela Secretaria de Tecnologias Aplicadas do MCTIC: a criação de oito centros de pesquisa aplicada em IA. A ideia é incentivar a união de instituições de ciência e tecnologia, universidades e empresas na criação de soluções para temas prioritários, como agricultura, indústria, cidades inteligentes e saúde.

Pano de fundo

Proteção de dados pessoais e estratégias de uso de IA são temas em destaque em todo o mundo, suscitando debates sobre como reduzir os possíveis pontos de atrito entre eles.

Já escrevi aqui que a proteção de dados pessoais e a IA não são amigos, nem inimigos. As soluções de IA dependem fundamentalmente do acesso a conjuntos de dados amplos e diversos. Muitos deles são considerados pessoais por legislações recentes, como o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), da União Europeia, e a nossa Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

À medida que o uso da IA se torna mais popular, reguladores e governos têm procurado encontrar meios de garantir a implantação segura e ética da IA ​​sem sufocar a inovação. Desafio que teremos que enfrentar de forma mais intensa a partir do ano que se aproxima.

Em 12 de setembro de 2019, o Comitê de Ministros do Conselho da Europa anunciou que um Comitê Ad hoc de Inteligência Artificial (CAHAI) seria criado para considerar a viabilidade de um quadro jurídico para o desenvolvimento, design e aplicação de inteligência artificial. No mesmo dia, a autoridade supervisora ​​de proteção de dados do Reino Unido, o Information Commissioner's Office (ICO), divulgou o mais recente de sua série de blogs sobre o desenvolvimento de sua estrutura para auditar a IA.

Da mesma forma, organizações públicas e privadas começam a lidar com a realidade de equilibrar o design de seus sistemas com a implementação dos requisitos de conformidade de proteção de dados.

Existe uma tendência para o desenvolvimento de estruturas éticas (isto é, para além da conformidade legal) para governar o uso de dados na IA e em outras tecnologias de análise de dados. Essa abordagem ética parte da preocupação de que, embora os casos de uso possam ser considerados  legais, eles também precisam ser "responsáveis".

Proteção de dados pessoais na Constituição

Cada curtida nas redes sociais, clique em sites, conversa com o gerente do banco, pagamento na farmácia ou no supermercado em que cedemos nosso CPF em troca de um desconto, ou mesmo no uso cotidiano dos apps instalados em nossos smartphones, deixa dados pessoais que vão muito além do nosso nome, RG, endereço…

Todos esses rastros vinculados a nós são pedaços de informações que, uma vez agrupados, são capazes de compor um retrato bastante preciso sobre nossos gostos, predileções, características.

A partir desse retrato da nossa personalidade, uma série de decisões são tomadas a nosso respeito. Se não estivermos no controle dos nossos próprios dados, pouco poderemos fazer a respeito de como seremos vistos e, até mesmo, julgados.

Muitas vezes "essa imagem virtual construída a nosso respeito nos leva a lugares desconhecidos, sem que saibamos, impactando as nossas vidas em uma sociedade cada vez mais orientada por dados", costuma dizer o professor Bruno Bioni, fundador do Data Privacy Brasil.

O fato de os dados pessoais serem a expressão direta da nossa própria personalidade é um dos motivos que levou vários países a incluírem sua proteção entre os direitos fundamentais do cidadão, explicitados na Constituição. E a considerarem a proteção de dados pessoais um instrumento essencial para a proteção da pessoa humana. O Brasil caminha consistentemente nessa direção.

Gestada e aprovada no Senado, a proposta de emenda constitucional incluindo a proteção de dados entre os direitos constitucionais segue agora para votação em dois turnos no Plenário da Câmara, incluindo uma novidade que causou muito alvoroço e dividiu opiniões. Além de determinar que compete privativamente à União legislar sobre esse direito, o texto agora determina a criação de um órgão responsável por garantir que ele seja respeitado. E especifica que seja uma "entidade independente, integrante da administração pública federal indireta, submetida a regime autárquico especial", com as mesmas atribuições de uma agência reguladora.

Lembrou da Agência Nacional de Proteção de Dados (a ANPD)? Pois é!  Sua inserção na PEC obrigará o governo a cumprir o acordo de torná-la um órgão independente, desvinculada da Presidência da República, como foi criada pela Medida Provisória 869/18, depois transformada no Projeto de Lei Complementar 7/2019. O texto do PLC fala em caráter provisório e reestudo após 2 anos para definir se a ANPD continua subordinada ao executivo ou não.

Foto: Vinicius Loures – Agência Câmara

"Nós aproveitamos para inserir na Constituição, como uma das responsabilidades e competências da União, não apenas o aspecto normativo mas também a fiscalização e a proteção da coleta e  do tratamento dos dados das pessoas, o que abriu caminho para fixarmos um atributo básico da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, que é a sua independência", disse o deputado Orlando Silva.

O deputado também criticou o fato de a ANPD não ter sido instalado até hoje. "Nossa expectativa é a de que o governo ande mais rápido, para que a autoridade regule os aspectos não tratados na LGPD", disse.

A medida foi recebida com um misto de comemoração e de preocupação. "Um golaço", me disse uma fonte da sociedade civil que preferiu não se identificar. "Mais um ponto que terá que ser acomodado para que as decisões da ANPD, no momento de entrada da LGPD em vigor, não sejam consideradas inconstitucionais", me disse um representante da área jurídica.

Há quem acredite que, enquanto não houver aprovação de nova MP mudando o regime da ANPD, fica valendo o formato atual da autoridade. A comparação é com a Emenda 8/95, que criou a Anatel.  Até a agência ser implementada, o Ministério das Comunicações manteve a competência regulatória/fiscalizatória sobre o setor.

Outros advogam que bastaria modular os efeitos da norma constitucional e sancionar uma regra de transição, assim que a ANPD entrasse em funcionamento (o que ainda não aconteceu, uma vez que o decreto definindo sua estrutura funcional e nomeando os diretores segue parado na Casa Civil). Toda a formatação atual da ANPD poderia ser mantida. Inclusive as pessoas nomeadas. Assim, se ela já estivesse funcionando, simplesmente ganharia autonomia, mantendo-se tudo que foi feito até então.

Há formas de harmonizar o estabelecido na PEC com o definido pela lei. Mas é preciso andar rápido. A LGPD começa a vigorar a partir de agosto do ano que vem, embora um polêmico projeto de lei em tramitação no Congresso defenda o adiamento da vigência em dois anos.

Otimista, Orlando acredita na rápida tramitação da PEC na próxima semana, e na sua aprovação ainda este ano.

Estratégia Nacional de IA
Já a consulta sobre a Estratégia Nacional de Inteligência Artificial acabou saindo por um motivo muito simples: a entrada no país na OCDE. O próprio texto de apresentação da consulta lembra que a OCDE define diversos princípios para o desenvolvimento responsável da IA, assim como recomendações quanto a políticas públicas e cooperação internacional. Entre os elementos constantes da recomendação, destacam-se que:

  • A IA deve beneficiar as pessoas e o planeta, impulsionando o crescimento inclusivo, o desenvolvimento sustentável e o bem-estar.
  • Os sistemas de IA devem ser projetados de maneira a respeitar o Estado de Direito, os direitos humanos, os valores democráticos e a diversidade, e devem incluir salvaguardas apropriadas – por exemplo, possibilitando a intervenção humana sempre que necessário – para garantir uma sociedade justa.
  • Organizações e indivíduos que desempenham um papel ativo no ciclo de vida de IA devem se comprometer com a transparência e com a divulgação responsável em relação a sistemas de IA, fornecendo informações relevantes e condizentes com o estado da arte que permitam (i) promover a compreensão geral sobre sistemas de IA; (ii) tornar as pessoas cientes quanto às suas interações com sistemas de IA; (ii) permitir que aqueles afetados por um sistema de IA compreendam os resultados produzidos; e (iv) permitir que aqueles adversamente afetados por um sistema de IA possam contestar seu resultado.
  • Os sistemas de IA devem funcionar de maneira robusta, segura e protegida ao longo de seus ciclos de vida, e os riscos em potencial devem ser avaliados e gerenciados continuamente.

Além disso, a Estratégia Brasileira para a Transformação Digital (E-Digital), aprovada em março de 2018 pelo Decreto n. 9.319/2018 e pela Portaria MCTIC nº 1.556/2018, já sinalizava a importância de tratar de maneira prioritária o tema da Inteligência Artificial em razão de seus impactos transversais sobre o país.

"A gente não colocou em consulta um documento fechado. Estamos em um processo de construção e nossa ideia é criar um ambiente para ouvir os interessados e potenciais impactados pela tecnologia", afirma a diretora de Serviços de Telecomunicações do MCTIC, Miriam Wimmer.

A consulta parte de uma pesquisa feita a pedido do governo brasileiro, em conjunto com a UNESCO, pela professora Rosa Maria Vicari, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que fez uma breve apresentação dos primeiros resultados do estudo no início de outubro, durante o evento Colloquium 2019, da IBM Brasil. E que descarta a ideia de que o Brasil esteja muito atrasado nesse campo do conhecimento, em entrevista ao Helton Simões Gomes, aqui do Tilt. Vale conferir!

Hoje, EUA e China lideram a competição pelo mercado global de IA, conhecido recentemente como a nova corrida espacial, onde as superpotências mundiais lutam para definir gerações de tecnologia a serem implementadas. Na opinião de Vicari, dá para pegar a China nessa corrida. Será?

Há controvérsia. Na opinião do professor Glauco Arbix, da Sociologia da Universidade de São Paulo, o desenvolvimento de Inteligência Artificial necessita de diversidade de pensamento humano. E o tema ainda está muito distante de ser tratado como multidisciplinar nas universidades brasileiras. Tanto que um aspecto fundamental da consulta para a Estratégia Brasileira de IA é justamente a elaboração de políticas de pesquisa na área.

Prevê-se que as tecnologias de inteligência artificial (IA) adicionem US$ 15 trilhões à economia global até 2030. Em 2017, a China anunciou um plano de três etapas para se tornar um líder global de IA de US$ 150 bilhões até 2030 por meio de investimentos em pesquisa, forças armadas e cidades inteligentes. Apesar de US$ 10 bilhões em capital de risco atualmente sendo canalizados para a IA no Vale do Silício, os EUA estão perdendo terreno, após cortes no financiamento de pesquisas científicas e restrições mais rígidas de imigração pelo governo Trump, pesquisadores e startups optaram por doações da China para financiar o futuro do desenvolvimento da IA.

Mas no Índice de Prontidão para IA, desenvolvido pela Oxford Insights e pelo International Development Research Center, o Brasil aparece no 40º lugar entre 194 países e territórios. México e Uruguai são os únicos dois países da América do Sul a desenvolver políticas e estratégias de IA. A estratégia do México, "Rumo a uma estratégia de inteligência artificial (IA) no México: aproveitando a revolução da IA" foi lançada em março de 2018. O Uruguai também abriu uma consulta pública de Inteligência Artificial para o Governo Digital em 22 de abril de 2019 e, desde então, atualizou sua Agenda Digital 2020.

Dá para olhar para o cenário da mesma forma que olhamos o copo, meio cheio ou menos vazio. Enchê-lo vai depender dos próximos passos.

Muitos países já têm a sua Estratégia Nacional de IA. Ao menos nesse aspecto, estamos, sim, atrasados.

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.