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Cristina de Luca

Confiança será a moeda de maior valor a partir de 2020

Cristina De Luca

26/12/2019 10h36

A confiança pode ser definida como "um conjunto de expectativas, socialmente aprendidas, de que indivíduos, grupos ou instituições atuem da maneira esperada em determinadas situações. Atualmente, ela é desconcertantemente baixa, declara Noam Gafni, co-diretor Executivo do Fórum Econômico Mundial. Razão pela qual ouviremos falar cada vez mais na necessidade de restauração da confiança em 2020. Sobretudo, da confiança nas tecnologias digitais.

Em artigo recente, Gafni mostra como a confiança evoluiu com o tempo, e o seu vínculo com os avanços da tecnologia.

"A Confiança 1.0 era tradicionalmente interpessoal: morávamos em pequenas comunidades e mantínhamos relacionamentos diretos e próximos. A confiança naquele tempo estava centrada em aldeias, tribos e outras redes locais. As pessoas confiavam em seu próprio grupo e eram céticas em relação a pessoas de fora. O número de Dunbar, que sugere que o cérebro humano pode efetivamente processar cerca de 150 relacionamentos interpessoais, há muito que é citado como o motivo pelo qual vivíamos em pequenas comunidades.

Durante a Revolução Industrial, mudamos para comunidades maiores, onde não podíamos mais manter relacionamentos diretos com um pequeno grupo de pessoas. As cidades cresceram, formalizando sistemas. A Confiança 2.0 tornou-se institucional. Empresas, governos e até escolas tornaram-se estruturas rígidas para ajudar a criar confiança e manter a coesão social à medida que navegávamos na vida em grupos maiores .

Com o surgimento da computação pessoal, a Confiança 3.0 se concentrou nas pessoas. As pessoas começaram a ignorar as instituições tradicionais, conectando-se diretamente entre si por meio de redes e mercados descentralizados. Os indivíduos postaram suas opiniões em blogs e mídias sociais, financiaram novos produtos e juntaram-se à economia do compartilhamento. Contornaram instituições e especialistas, contando com a sabedoria das multidões. Novos proxies de confiança foram desenvolvidos. E esses proxies tecnológicos passaram a permitir que os indivíduos confiassem um no outro sem se conhecerem pessoalmente e ignorassem as instituições tradicionais".

Agora, com a Quarta Revolução Industrial em andamento, o modelo de confiança deve evoluir mais uma vez. Em um ambiente complexo e em constante mudança, precisamos de um novo modelo, o da Confiança 4.0, que construa uma ponte entre tribos, culturas e sistemas; de redes ponto a ponto a estruturas de cima para baixo. Precisamos abrir espaço para o interpessoal, para instituições e indivíduos – precisamos construir confiança interdependente, criando um relacionamento multidimensional entre diferentes partes interessadas. A Confiança 4.0 permitirá que sistemas existentes e emergentes trabalhem juntos."

Gafni é otimista em meio a vários pessimistas que preferem se focar no techlash e em seus efeitos para a sociedade. Os pessimistas dizem que é difícil identificar quando as coisas começaram a azedar, mas certamente a "má conduta" digital que caracterizou o referendo do Brexit e a eleição de Donald Trump, com suas alegações de intromissão russa, manchou a reputação dos titãs tecnológicos e de suas plataformas em todo o mundo, trazendo para a Era da Confiança 3.0 um comportamento muitas vezes semelhantes ao que caracterizou a Confiança 1.0.

Confiar é algo complicado de definir e medir. É um ato de equilíbrio e não é preciso muito para desviá-lo. Como escreveu o psicólogo social Morton Deutsch em seu livro seminal de 1973, The Resolution of Conflict: "A confiança envolve a justaposição delicada das mais elevadas esperanças e aspirações das pessoas, com suas preocupações mais profundas e medos mais sombrios".

Por isso, em quem confiar passou a ser uma das questões mais importantes do nosso tempo.

E saber navegar no novo mundo da 'confiança distribuída', 4.0, será uma das habilidades mais valorizadas na Economia Digital, especialmente em relação aos líderes.

"A boa governança nunca foi tão simples. As informações nas quais os líderes confiam são difíceis de interpretar; os resultados de suas decisões são incertos. A moderna tecnologia de comunicação apenas amplia o desafio: uma inundação cada vez maior de informações e desinformação torna mais difícil do que nunca entender o mundo, enquanto a vasta gama de conexões que a internet permitiu aumenta a probabilidade de consequências imprevisíveis", escreve Daniel Winter, no Financial Times.

Para complicar, o caminho que muitos governos escolheram para restituírem a confiança em seus domínios foi o de tentar ampliar os controles sobre a Internet e as Big Techs. À medida que o techlash cresceu, cresceu também o apoio de determinadas camadas da sociedade a políticas expressamente projetadas para desacelerar o ritmo da inovação tecnológica, incluindo proibições, impostos e regulamentações rigorosas sobre determinadas tecnologias.

Nos últimos anos, aumentaram os pedidos de ação antitruste e de dissolução das Big Techs (embora a Microsoft, que já tem um processo antitruste em seu currículo, venha sendo amplamente poupada nesta rodada. seu CEO, Satya Nadella, acaba de ser nomeado a personalidade do ano pelo Financial Times).

Em agosto de 2018, a Apple se tornou a primeira empresa na história a atingir uma avaliação de US $ 1 trilhão. Um mês depois, a Amazon ingressou no clube (embora já tenha caído para bilhões), e em abril, a Microsoft também. Mas não é apenas o número de zeros que preocupa os reguladores e outras empresas. Essas grandes empresas de tecnologia evoluíram de missões singulares (mecanismos de busca, varejo, telefones) para empresas que dominam desde a distribuição de conteúdo, , carros autônomos e muito mais. A facilidade com que assumem novos mercados (e esmagam ou sugam participantes menores) preocupa os reguladores. O uso que fazem do dados de seus usuários, para diversos fins, incluindo agora o treinamento de sistemas de IA, também.

Dos amigos que fazemos aos alimentos de que gostamos, através de nossos hábitos de compras e sono, a maioria dos aspectos de nossas vidas cotidianas agora pode ser transformada em pontos de dados legíveis por máquinas. Para aqueles capazes de transformar esses pontos de dados em modelos prevendo o que faremos a seguir, esses dados podem ser uma fonte de poder e de riqueza.

Nesta década, as violações de dados aumentaram em tamanho, custo e destrutividade. Eles expuseram segredos do governo, vazaram fotos de celebridades privadas e prejudicaram as redes de logística. Hoje, a violação média de dados custa às empresas quase US$ 4 milhões. Dois terços das maiores violações de dados já ocorreram nesta década e bilhões de registros foram roubados. Apesar dos inúmeros avisos de segurança, os consumidores ainda reutilizam senhas do Twitter para suas contas bancárias. Muitos se sentem sem esperança em proteger suas informações privadas de qualquer maneira.

Os corretores de dados coletam e vendem detalhes íntimos de nossas vidas, desde a idade e o endereço residencial até nosso interesse em assistir determinados filmes. As empresas de Internet com milhares de pontos de dados sobre nós foram apanhadas dando acesso a terceiros. A chamada Dark Social se instalou de forma avassaladora.

Resultado? A preocupação com o capitalismo de vigilância também tem aumentado, bem como a ideia de que o princípio da privacidade por design deva ser consagrado por todos: reguladores, empresas e o poder público. Muitos teóricos, como Sylvie Delacroix e Neil Lawrence, do Instituto Alan Turing, defendem que as ferramentas necessárias para capacitar os titulares dos dados a protege-los melhor não são tecnológicas. São de ordem social. Regulações, mas principalmente a Educação, devem atuar de modo a devolver aos indivíduos o poder resultante de dados agregados por meio da restauração das relações de confiança!

Ao contrário da atual abordagem de tamanho único para governança de dados, deveria haver uma pluralidade de relações de confiança, permitindo aos titulares de dados escolher relações de confiança que reflitam suas aspirações e trocar essas relações de confiança quando necessário, defendem Delacroix e Lawrence.

Não será uma tarefa fácil!

Em 2019, a Forrester previu que uma em cada 10 startups começaria a vida com mais trabalhadores digitais do que humanos. E a McAfee comprovou que um terço das pessoas já não conseguia controlar como as empresas coletavam informações pessoais.

No Brasil, por exemplo, teremos muito com o que nos ocupar em 2020.

Teremos eleições municipais, e as regras já definidas pela Justiça Eleitoral para enfrentamento à desinformação (leia-se distribuição de fake news), incluindo a contratação ou realização de disparo em massa de propaganda eleitoral em plataformas pagas na internet, embora necessárias, parecem um tanto difíceis de aplicar, na prática. Assim como a regra para remoção de conteúdo irregular, no caso da propaganda política, também deverá ser acompanhada de perto.

Teremos a entrada em vigor a Lei Geral de Proteção de Dados LGPD), em agosto, e a possível publicação do decreto que definirá a estrutura da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), bem como a nomeação de seus cinco diretores. Essas definições deixarão mais claro o modelo de atuação da ANPD em um momento crucial para a compreensão, no país, do que é e como se aplica a proteção de dados pessoais. Que, por sua vez, pode virar um direito fundamental dos brasileiros, se a PEC em tramitação no Congresso for aprovada, muito provavelmente antes da LGPD começar a vigorar.

Teremos também a definição, no Supremo Tribunal Federal, da constitucionalidade ou não do artigo do Marco Civil da Internet que dispõe sobre a obrigatoriedade de remoção e a responsabilização das plataformas por conteúdos publicados por seus usuários. E o início da elaboração, pelo Executivo, da Estratégia Nacional de Inteligência Artificial.

Todos temas extremamente relevantes quando se pensa na restauração da confiança entre indivíduos, grupos ou instituições e deles com a tecnologia disponível.

Para a indústria de tecnologia, talvez a única maneira de garantir que as grandes mudanças da IA, da mídia social, da Internet das Coisas e do 5G acabem sendo positivas, é abraçar o atual "techlash" como um ferramenta para mudança.

Já não é mais suficiente que as empresas façam o que é lucrativo . Eles devem fazer a coisa certa, em nome de todas as partes interessadas.

Manik Narayan Saha, CIO da SAP Ásia-Pacífico e Japão, ecoou esse sentimento, em depoimento recente. " As empresas de tecnologia precisarão trabalhar em estreita colaboração com reguladores e governos para definir estruturas e princípios de operação que salvaguardem os interesses dos cidadãos".

Sábias palavras. Para restaurar a confiança precisamos de equilíbrio. Talvez esse seja o caminho mais adequado e eficaz!

Que venha 2020!

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.