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Cristina de Luca

A privacidade e o fim do dinheiro

Cristina De Luca

06/01/2020 10h39

O iminente fim do dinheiro anda preocupando grupos de liberdades civis. Tudo porque, sem dinheiro, "não há chance para o tipo de privacidade que preserva a dignidade que sustenta uma sociedade aberta", escreve Jerry Brito, diretor executivo do Coin Center, um grupo de defesa de políticas baseado em Washington, em um relatório recente.

O Coin Center argumenta que o dinheiro é mais do que um método de pagamento. É uma ferramenta fundamental para a privacidade individual e autonomia e é necessário para uma sociedade aberta. Chamados de "instrumentos ao portador", presume-se que as notas e moedas sejam de propriedade de quem os possui. Podemos usá-los para negociar com outra pessoa sem que terceiros conheçam detalhes da transação.

Para Alex Gladstein, Chief Strategy Officer at the Human Rights Foundation, uma democracia saudável precisa de privacidade financeira. Se todos os nossos comportamentos e todos os nossos movimentos forem rastreados, isso pode prejudicar a democracia de maneira fatal. Os extratos bancários dizem mais sobre o que estamos fazendo do que nossas contas de mídia social ou nossos e-mails.

A questão central se resume à busca de equilíbrio entre conveniência e velocidade versus privacidade e liberdade. Segundo o MIT Technology Review tudo dependerá de quem desenvolverá e controlará os sistemas de pagamento eletrônico do futuro.

Com medo de deixar os pagamentos unicamente em mãos de Big Techs, fintechs e bancos, muitos governos estão buscando desenvolver algum tipo de substituto eletrônico para notas e moedas. É o caso do Brasil, com o modelo de pagamento instantâneo em gestação no Banco Central. Na outra ponta, defensores de criptomoedas apátridas e sem dono, como o Bitcoin, dizem que são a única solução tão à prova de vigilância. Mas ainda há dúvidas a respeito, da mesma forma que há dúvidas de que possam ser viáveis ​​em larga escala.

De olho nas criptomoedas, a Human Rights Foundation publicou um guia sobre stablecoins para pessoas que vivem em economias em risco, para ajudar aqueles que precisam realizar transações privadas no decorrer de um trabalho sensível.

Para ilustrar os perigos do aumento do controle do Estado, os vigilantes das liberdades civis nomeiam alguns dos países mais sem dinheiro do mundo como aqueles com baixos registros de direitos humanos e reputação democrática: Irã, Nigéria, Rússia, China, por exemplo. Na outra ponta,  países que tiveram que suportar ditaduras e se recuperaram aparecem como os mais  cautelosos com o poder que dão a seus governos ao longo da vida, como a Alemanha, que se destaca como um dos mais fiéis usuários de dinheiro.

Vantagens e desvantagens de um mundo sem dinheiro

A ideia de uma sociedade sem dinheiro é promissora. Mas há uma série de advertências que qualquer país precisa considerar, antes de banir por completo o papel moeda.

De uma certa perspectiva, uma sociedade sem dinheiro parece utópica. Um dos supostos benefícios é a redução da criminalidade. A lógica é que, se houver menos dinheiro para roubar, menos dinheiro será roubado. Lavar dinheiro sujo também passa a ser mais difícil, pois todas as transações são registradas, de uma forma ou de outra. Outro benefício, inegável, é a conveniência para a realização de pagamentos, sobretudo em transações digitais.

Mas há desvantagens também. Em alguns países, embora as invasões tenham diminuído como resultado de menos dinheiro circulando, as fraudes financeiras aumentaram acentuadamente. À medida que os pagamentos passam a ser digitais e online, crimes como roubo de identidade, aquisição de contas, transações fraudulentas e violações de dados, aumentam. Hackers e outros criminosos passam buscar novas maneiras de obter acesso a contas e potencialmente criar contas sintéticas para facilitar atividades mais sofisticadas de lavagem de dinheiro.

Outra desvantagem do mundo sem dinheiro vem da própria natureza das redes financeiras: elas são complexas. Um pagamento em dinheiro é tão simples quanto uma transação pode ser, enquanto que os pagamentos virtuais dependem de vários subsistemas, cada um deles representando um potencial colapso do sistema. Este Ano Novo teve um começo ruim para milhões de clientes do Lloyds, Halifax e Bank of Scotland, que não conseguiram acessar suas contas nos sites e aplicativos móveis dos bancos por quase nove horas devido a uma interrupção no Reino Unido. As três marcas, que fazem parte do Lloyds Banking Group, pediram desculpas repetidamente aos clientes depois que o problema começou por volta das 4 horas da manhã de um feriado bancário, quando as agências estão fechadas.

A exclusão social também preocupa. Algumas pessoas ainda dependem principalmente de dinheiro: os pobres. Sendo um tanto sem voz, eles tendem a ser ignorados pelos formuladores de políticas. Mas organizações de caridade alertam que, se forçarmos nossas sociedades a rejeitarem por completo o dinheiro, os membros mais vulneráveis serão ainda mais excluídos e isolados. Uma conta bancária, um smartphone operacional e serviços financeiros digitais podem ser de fácil acesso para a classe média, mas não o são para alguns grupos sociais formados por idosos, imigrantes, deficientes e cidadãos socialmente vulneráveis.

A Suécia está à beira de se tornar uma sociedade sem dinheiro. Em 2025, espera se tornar totalmente sem dinheiro, embora provavelmente aconteça ainda mais cedo. Hoje menos de 15% dos pagamentos são em dinheiro, e o próprio dinheiro se tornou escasso. Sua circulação está abaixo de um por cento do PIB do país. Os seis maiores bancos privados da Suécia estão migrando para a falta de dinheiro, reduzindo os caixas e não aceitando mais depósitos em dinheiro em mais da metade de suas agências. As maiores empresas do país, como IKEA e Ahlens, sua maior rede de lojas de departamento, não aceitam mais dinheiro em determinados locais.

O relatório "Acess to cash review", publicado em março, concluiu que, na Suécia, "milhões pessoas poderiam potencialmente ficar de fora da economia e enfrentar riscos crescentes de isolamento, exploração, dívida e aumento de custos.

Na verdade, a maioria dos países não está pronta para uma sociedade sem dinheiro. A transição pode ser inevitável , mas mais garantias legais precisam ser implementadas primeiro para proteger os cidadãos. Não por acaso, o Banco Central Europeu defende o uso continuado de dinheiro, apesar da mudança da sociedade em direção ao pagamento digital.

Aqui, o compartilhamento de dados é uma das preocupações da proposta de regulação para o Open Banking, que o Banco Central colocou em consulta pública até 31 de janeiro. Vale acompanhar. O Open Baking e o pagamento instantâneo estão na base do nosso sistema financeiro e rumo aos meios de pagamento digitais e o fim do dinheiro.

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.