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Cristina de Luca

Safernet luta para tornar eleição do Comitê Gestor da Internet transparente

Cristina De Luca

05/03/2020 21h27

O Comitê Gestor da Internet (CGI.br), órgão encarregado da governança da Internet no país, está em pleno processo eleitoral para a escolha dos representantes da sociedade civil que passarão a integrá-lo para o triênio que vai de junho deste ano até junho de 2023.

É a primeira eleição, após a consulta pública realizada ainda no governo Temer (2017) com os objetivos de aprimorar o modelo multisetorial de governança que garantiu o crescimento do uso da Internet no país, de definir as competências do CGI.br e do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), e de fortalecer o consenso como regra para as decisões do colegiado. E que passou pelo compromisso de mudanças no processo eleitoral que elege os conselheiros da sociedade civil, tornando-o mais transparente e menos sujeito a "questionamentos" como os que existiram no passado.

Era de se esperar, portanto, que esse seria um processo eleitoral cercado de cuidados, para evitar problemas que o colocassem em risco, ou expor a comissão eleitoral. Não é o que vem ocorrendo, na opinião da Safernet, cujo presidente, Thiago Tavares, ocupa hoje uma dos assentos atribuídos ao Terceiro Setor na composição do CGI,br.

Thiago Tavares, presidente da Safernet Brasil

"Acredito que esse processo só será resiliente se ele for transparente. E está faltando transparência. Se continuar dessa forma a eleição estará sujeita a questionamentos. O que não é bom para ninguém", afirma o executivo.

Preocupam à Safernet as dificuldades "impostas" pela comissão eleitoral para acesso aos relatórios, estatutos e demais documentos públicos ou de interesse público que comprovam que todas as entidades homologadas para integrar os colégios eleitorais cumprem as regras que as habilitam a isso.

"A comissão eleitoral limitou o acesso aos documentos apenas de forma presencial, na sede do NIC.br, em São Paulo, em uma sala cofre, e proibiu fotos ou cópias desses documentos, como se eles fossem sigilosos, impedindo com isso que as partes interessadas possam embasar seus pedidos de recurso/impugnação de entidades que homologadas sem preencher todos os requisitos", explica Thiago. "Essa é uma medida abusiva, que precisa ser rapidamente revertida, administrativamente ou judicialmente, sob pena de nulidade do processo", completa.

Ontem, 4 de março, a Safernet enviou um ofício à comissão eleitoral, na pessoa do coordenador co CGI.br, Maximiliano Martinhão, solicitando a publicação dos documentos, a dilação do prazo para os pedidos de recurso e a atualização da lista das entidades já homologadas.

Hoje, 5 de março, o CGI.br atualizou a lista em seu site e publicou uma nota prorrogando o prazo para contestações, que agora passa a ser 11 de março. A data anterior era 6 de março. Mas ainda não se pronunciou sobre a disponibilização dos documentos, ao menos para que possam ser consultados de forma remota por entidades de fora de São Paulo, garantindo igualdade de condições a todos os participantes do processo.

Também hoje a Safernet enviou um novo ofício para a comissão solicitando a disponibilização dos "documentos públicos, obtidos e custodiados em formato eletrônico no curso de um processo eleitoral disciplinado por portaria ministerial.

"Qual a justificativa para o Comitê Gestor não querer usar a própria rede para disponibilizar documentos públicos, exigindo presença física do interessado em consultá-los", questiona Thiago.

Um pouco de contexto

O processo eleitoral elegerá 11 representantes da Sociedade Civil no Comitê Gestor, sendo quatro (4) do setor empresarial, quatro (4) do terceiro setor e três (3) da comunidade científica e tecnológica. As entidades que desejam participar e votar precisam ser homologadas e indicar candidatos para representar o seu segmento.

A fase atual, de formação dos colégios eleitorais por setor, é considerada decisiva para o processo. São poucas as instituições, em todos os 7 segmentos econômicos com representação no Comitê, que têm possibilidade de participação. Normalmente, são os candidatos a conselheiros que arregimentam as entidades para se cadastrarem no processo eleitoral. Isso fez com que, no passado, uma miríade de entidades municipais sem um papel claro na Internet, se cadastrassem no colégio para ajudar a eleger determinados candidatos. Formavam-se verdadeiros currais eleitorais.

Durante os debates que se seguiram à consulta pública de 2017, ficou decidido que entidades municipais estranhas à Internet, seriam expurgadas do processo eleitoral. E o decreto que definiu detalhes da eleição deste ano já inclui essa mudança.

"Houve esse avanço institucional e foram criados critérios para que uma entidade do terceiro setor pudesse participar do colégio eleitoral. O primeiro, ter abrangência nacional ou estadual, comprovada por seu estatuto social. Também apresentar seu relatório de atividade e, por fim, apresentar evidências públicas de que tem algum interesse ou envolvimento com temas relacionados à governança da Internet", comenta Thiago.

"Os documentos que comprovam esses critérios precisam ser públicos, para que a comunidade possa aferir se as entidades que formam aquele colégio eleitoral cumprem as regras. Esses documentos não são sigilosos. Estatuto social é público. Tem que estar registrado em cartório. Relatório de atividades existe para ser divulgado. Nos causa espanto que esses documentos, de grande interesse e relevância para um processo eleitoral que se anuncia regido pelos princípios da publicidade, da transparência e da isonomia, tenham qualquer tipo de restrição de acesso", completa ele.

O presidente da Safernet não acredita que esteja havendo má fé da comissão eleitoral. "Quero acreditar que ela possa ter sido induzida a erro por um parecer jurídico absolutamente equivocado, porque não há dados nesses documentos que possam ser considerados pessoais ou sigilosos", argumenta.

De fato, segundo pessoas próximas ao assunto, falou mais alto a preocupação interna do CGI de, justamente em um momento no qual o país trabalha em prol de uma maior conscientização sobre proteção de dados, não tornar públicos documentos enviados única e exclusivamente com a finalidade de inscrição no colégio eleitoral, sem a anuência expressa das entidades.

"Uma coisa é o edital ser um documento público, outra coisa é publicizar estatutos sem ter pedido licença para as empresas. As entidades participantes não autorizaram esse tipo de divulgação a priori", me disse uma dessas pessoas. Por receio em publicizar os estatutos, o CGI teria decidido deixá-los disponíveis apenas para consulta presencial na sede do NIC.br.

Além disso, o CGI também estaria se valendo do fato de o edital não mencionar em tornar os documentos públicos. O compromisso é  tornar públicas apenas as listas de quem foi homologado e quem não foi, quem é o responsável por cada entidade e a carta de declaração de interesse.

Falhas operacionais

Outra crítica da Safernet é em relação à ocorrência de falhas operacionais da equipe encarregada da triagem desses documentos. "A Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), ao procurar saber porque ainda não aparecia entre as entidade homologadas, foi informada de que faltavam documentos que ela, de fato, já havia enviado. E tinha o comprovante dos envios, porque todos os documentos estão sendo submetidos de forma eletrônica. Eles ganham o hash assim que são enviados", explica Thiago.

Procurada, a RNP não retornou o contato até o momento de publicação desse texto, para comentar o fato.

De novo, a preocupação da Safernet é a de que se  uma falha operacional como essa aconteceu com uma instituição do porte da RNP, que está na gênese da Internet no Brasil, e do próprio Comitê Gestor, ela possa ter acontecido também com outras entidades menos conhecidas.

Novamente segundo pessoas familiarizadas com o processo, é natural que ocorram falhas. Justamente por isso a eleição inclui a fase de recursos e contestações das entidades habilitadas a votar.  Esse período serve para a correção de erros. Principalmente por ser o momento em que  há pessoas tentando reverter candidaturas descartadas pela comissão eleitoral, de um lado, e de outro, gente questionando a participação de entidades homologadas.  "É uma briga para tirar quem está dentro e colocar quem está fora", me disse uma pessoa que conhece bem o processo.

Objetivo comum 

Thiago diz que o seu maior temor é o de que  o processo eleitoral seja questionado, posteriormente, e até anulado por contas dessas falhas, que precisam ser corrigidas o quanto antes. "Nosso interesse é o de que o processo sobreviva até o final. Mas como está, não vai sobreviver", completa.

"Imagina se a Safernet, que não tem sede em São Paulo, se vê obrigada a entrar com um mandado de segurança para obter esses documentos e suspender os prazos e a tramitação regular do processo eleitoral enquanto essas falhas graves no desenho do processo não forem corrigidas, as consequências que isso pode ter", pondera Thiago, reconhecendo que não gostaria de chegar a esse ponto.

O pleito não atende só a Safernet. Mais da metade do colégio eleitoral é de fora de São Paulo. Muitos não têm como consultar estatutos e outros documentos de outra forma a não ser tendo acesso ao que foi fornecido pelas instituições ao CGI.

"A bandeira de transparência não é uma bandeira nova. Quem se dispuser ler as atas das reuniões no CGI.br do fim do ano passado vai encontrar declarações enfáticas, minhas, defendendo menos opacidade e mais transparência", afirma Thiago.

O temor de quem está de fora também é o de que mais esse tumulto em torno da eleição acabe sendo prejudicial para o CGI. O processo eleitoral sofreu muitos atrasos, por motivos não muito claros. Não se sabe se por conta desses atrasos, que acabou deixando um prazo muito curto para a submissão de candidaturas para o colégio eleitoral, ou se por conta das novas regras, essa é a eleição com o menor número de participantes, no geral. E, embora alguns poucos setores tenham crescido um pouco,  o colégio eleitoral do Terceiro Setor foi o que mais encolheu.

O CGI.br também foi procurado, mas não se pronunciou.

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Nos últimos dois anos, debates em torno da reestruturação da composição do CGI.br intensificaram-se. A sociedade clama por maior representatividade de atores da nova economia digital e do próprio governo na entidade  responsável por estabelecer as diretrizes estratégicas relacionadas ao uso e desenvolvimento da Internet no Brasil e as diretrizes para a execução do registro de Nomes de Domínio e alocação de Endereço IP (Internet Protocol), entre outras atribuições.

Com base nos princípios do multissetorialismo e transparência, o CGI.br representa um modelo de governança da Internet democrático, elogiado internacionalmente, em que todos os setores da sociedade são partícipes de forma equânime de suas decisões.

Desde 2003, o CGI.br é composto por 21 integrantes, sendo 11 representantes eleitos pela Sociedade Civil, nove representantes de órgãos de governo e um representante de notório saber em assuntos de Internet.

Uma definição clara das atribuições da entidade, bem como da sua composição,  é importante para estabelecer o peso de sua atuação e proporcionar segurança e confiança em suas decisões.  O processo eleitoral pós Consulta pública deveria servir para apaziguar os ânimos, e afastar definitivamente qualquer possibilidade de o governo querer arbitrar, sozinho, a governança da Internet. 

Sobre a autora

Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.

Sobre o blog

Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.