Compartilhamento de dados na luta contra Covid-19 pode ameaçar privacidade?
No mundo inteiro, o compartilhamento coordenado de dados pessoais se tornou uma ferramenta essencial na luta contínua contra o coronavírus, suscitando preocupações com a privacidade dos cidadãos.
Naturalmente, qualquer tipo de programa abrangente de vigilância sancionado por governos, por mais bem-intencionados que sejam, levantam sérias questões: como nossos dados sensíveis estão sendo usados? Quem tem acesso a eles? Qual a vulnerabilidade de nossos dados considerando vazamentos e hacks? Como eles poderiam ser explorados por empresas privadas no futuro? E, é claro, existe uma maneira de mitigar o risco de violações da privacidade?
Por exemplo, dados em tempo real sobre a distribuição geográfica e o estado de saúde dos cidadãos – sejam eles portadores ou não dos sintomas de Covid-19, sabidamente infectados ou não – embora necessários para a criação de políticas de saúde pública, precisam ser tratados de forma pontual e temporária.
De fato, as autoridades podem mapear áreas em que a capacidade de responder adequadamente à propagação do vírus é comprometida, com um alto nível de detalhe, usando uma combinação de coleta de dados primários disponíveis, dados de agências nacionais de estatísticas, imagens de satélite, dados de geolocalização.
Por outro lado, é preciso ter em mente que esses dados não são exclusivos das organizações de saúde pública e dos governos. Muito menos sua propriedade. A exposição indevida desses dados a empresas privadas, mesmo no interesse da saúde pública, é motivo de preocupação, pois esses registros possuem um valor comercial significativo.
Devemos ter sempre em mente que as decisões tomadas nas próximas semanas moldarão o mundo nos próximos anos. Respeitar as melhores práticas para o uso ético de dados pessoais deve, necessariamente, estar entre as premissas do monitoramento defendido pelas autoridades.
Mesmo em tempos de crise, precisamos cumprir os regulamentos de privacidade de dados e garantir que os dados sejam usados de forma ética.
Por isso chama atenção como, no Brasil, estamos tratando dessa questão. Todas as vezes que penso a respeito me vem à mente uma fala da deputada Bruna Furlan (PSDB-SP), meses atrás, em um debate promovido pelo Data Privacy Brasil: "Governos não gostam de proteção de dados pessoais", afirmou.
Principalmente quando essa proteção os obriga a ser o mais transparente possível no uso desses dados.
Se é necessário pensar no cenário pós-pandêmico, como gosta de pregar a ala econômica do governo brasileiro, é preciso pensar agora em um arcabouço legal que balize o tratamento dos dados pessoais dos brasileiros na luta contra o Covid-19. E nesse sentido, mesmo ainda não tendo entrado em vigor (o que agora pode vir a acontecer só em 2021), nossa Lei Geral de Proteção de Dados deve ser usada como parâmetro.
Segundo advogados e especialistas em proteção de dados, existem artigos da LGPD que, se estivessem em vigor, poderiam colaborar para o enfrentamento da atual situação de calamidade, resguardando as garantias e os direitos fundamentais. A lei viabiliza o tratamento para questões de saúde pública e, principalmente, proteção da vida, assegura direitos e estabelece obrigações.
A esperança agora é a de que a sociedade assuma a dianteira e trate de cobrar a adoção de boas práticas de proteção de dados, do governo e das empresas, a despeito das tentativas de adiamento da vigência da lei e da inoperância do governo na instauração da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).
"O debate em torno da LGPD acendeu a sensibilidade da sociedade pra o valor da proteção de dados e os danos que o uso abusivo de dados pode causar. O gênio já saiu da garrafa", comenta Danilo Doneda, advogado, Professor no IDP, e membro indicado pela Câmara dos Deputados para o Conselho Nacional de Proteção de Dados. Por isso, na opinião dele, quem for usar dados pessoais para combater a Covid-19 terá que se preocupar essencialmente em ser o mais transparente possível.
"No combate a uma epidemia faz muito pouco sentido usar o segredo, tergiversar, porque esse é um esforço comum, conjunto, de toda a sociedade. Restringir acesso à informação implica em reduzir a confiança, o próprio espírito de solidariedade, de cumplicidade, que envolve tudo isso", argumenta Doneda.
"Essa transparência vai garantir que depois a gente não venha a ter uma ressaca do uso de dados para o combate à Covid-19. Ele tem que ser um uso específico, proporcional e restrito. Você pode até usar os dados depois, para pesquisas científicas, mas isso tem que ser feito da forma correta. Se as pessoas pararem de confiar no tratamento dos dados, elas não vão dar as informações corretas", completa.
Por exemplo, dizem que vem por aí uma Medida Provisória para usar dados do censo. "Não se mexe em dado do censo. As pessoas precisam confiar no censo.Além do que, qual a validade de uso dos dados do censo em uma situação tão dinâmica quanto essa?", questiona Doneda.
Seria interessante a reunião de organizações empresariais e da sociedade civil para pensar em parâmetros comuns para aplicações que utilizem dados pessoais dentro desse regime de transparência e respeito aos princípios da LGPD".
Doneda acredita que a Câmara, como a casa legislativa claramente dominante em toda a tramitação da LGPD, irá debater com a sociedade e avaliar a necessidade (ou não) de prorrogação da lei à luz da urgência Covid-19, e de termos enfim a base jurídica que falta para os tratamentos de dados tão necessários agora. "Deveríamos é estar pensando em adiantar a vigência da LGPD", diz.
Na opinião de Doneda, essa ânsia de postergar a vigência da lei é prejudicial para a reconstrução social e econômica após a crise.
Concordo.
Até aqui – e os projetos de lei que propõem o adiamento da vigência da lei são um bom exemplo – tem prevalecido a lógica econômica que contrapõe a queda do faturamento causado pelo coronavírus e os custos para se adequar à LGPD. Mas o adiamento pode gerar consequência sociais e econômicas mais nefastas para o país.
Quem teme a LGPD e pede o adiamento da vigência da lei entrou tarde no debate de dados pessoais e será punido pela própria sociedade. A história de implementação do GDPR, na Europa, e da lei de privacidade da Califórnia têm nos mostrado isso.
O que deveríamos estar pedindo não era o adiamento da vigência da LGPD, mas a rápida estruturação da ANPD. Como bem lembra a Coalizão Direitos na Rede na carta aberta endereçada ao Senado, a entrada em vigor da LGPD não representa a aplicação imediata de sanções aos atores.
"A própria lei prevê, em seu artigo 55-J, uma aplicação modulada de prazos e procedimentos de adequação, iniciado com advertência. Outro ponto importante a respeito das sanções é que a lei também prevê que, na aplicação de multa, devem ser considerados (a) a boa-fé ; (b) a condição econômica; e (c) a cooperação do infrator antes da aplicação de advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas".
Boa-fé, senhoras e senhores, é tudo o que mais precisamos agora.
E boa-fé passa pelo uso ético dos dados e dos algoritmos no combate ao Covid-19. Seja no monitoramento de celulares para o controle de medidas de contenção da propagação da epidemia, seja nas pesquisas biomédicas que procuram por antídotos. Mais do que nunca precisamos colocar na frente de tudo a garantia da defesa da integridade, dignidade e direitos humanos dos cidadão, clientes, consumidores.
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