Uma lei ruim para fake news, votada na hora errada, será um desastre
Cristina De Luca
24/05/2020 10h06
Já virou tradição no Brasil nosso Congresso, pressionado pelos acontecimentos, buscar respostas apressadas ao que sugere ser o grande inimigo da vez. Foi assim com a votação do péssimo projeto de Lei de Crimes Eletrônicos, por exemplo, quando o Código Penal e Marco Civil da Internet tentavam debater o tema com a seriedade necessária à luz do futuro digital, não apenas do momento presente.
Nessa sexta-feira, 22 de maio, escapamos de ver o Senado, em um acordo de líderes, pautar para a próxima semana a votação em plenário do PL 2.630/2020, do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. A proposição contém uma série de normas e mecanismos de transparência para redes sociais e serviços de mensagens da internet para combater abusos, manipulações, perfis falsos e a disseminação de fake news.
Chama atenção a pressa em legislar sobre um tema controverso, em um momento em que a atividade legislativa está abreviada por conta de todos os mecanismos necessários à contenção da propagação do Covid-19, que impede a matéria de passar pelos debates nas devidas comissões parlamentares e, pior, o debate com a sociedade, de modo geral, através da realização de audiências públicas. Além disso, produzir e disseminar desinformação sobre a Covid-19 são atividades que já vêm sendo enquadradas como contravenção penal.
Pode-se até argumentar que o PL do Senado passou por uma consulta pública, junto com o texto do PL 1429/2020, da Câmara, de autoria dos deputados Felipe Rigoni (PSB-ES) e Tabata Amaral (PDT-SP). Consulta essa que deveria ter sido encerrada em 18/5, mas que foi prorrogada por mais um mês, diante das muitas manifestações de entidades da sociedade civil de problemas no texto. Desconsiderando a prorrogação, o senador reapresentou seu PL na semana passada, com a intenção de vê-lo votado rapidamente no Senado, enquanto a consulta da Câmara continua.
Impossível não enxergar na medida uma tentativa de ter o Senado como casa revisora da proposição, para fazer passar, sem debate e sem os devidos ajustes, um texto que, sim, ao contrário do que afirma o senador, pode estabelecer censura e ferir a liberdade de expressão.
Ninguém duvida de que é preciso dar respostas à escalada desenfreada da desinformação na rede. Mas seguramente, não de forma tão célere, aproveitando a pandemia como desculpa. Ainda mais com uma CPI de fake news em plena atividade.
Alessandro Vieira (Cidadania-SE) em pronunciamento via videoconferência / Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
Muitos erros e poucos acertos
O maior problema continua sendo a definição de desinformação e quem deterá o poder para sua identificação e para determinação da remoção de conteúdo falso. Em alguns casos, a notícia inverídica é facilmente identificável, em outros, não. Não por acaso, os serviços de fact-checking costumam seguir normas internacionais a respeito.
Na opinião de muitos advogados, estudiosos e ativistas da liberdade de expressão, o PL do Senado incentiva as plataformas a adotarem mecanismos automatizados de vigilância massiva. Para o coletivo Intervozes, "a previsão de concessão de maior poder a corporações privadas quanto ao fluxo de informações contraria recomendação do Relator Especial para Liberdade de Expressão da ONU sobre moderação de conteúdo, que aponta para a necessidade de reduzir o poder de monopólios digitais e não fortalecê-lo".
Um maior controle sobre as plataformas segue sendo o desejo de muitas ONGs mundo afora (que o diga a Freedom from Facebook & Google), mas sempre no sentido de buscar maior transparência de seus algoritmos, e da forma como hierarquizam a informação, priorizando a apresentação de determinados conteúdos em detrimento de outros. Nunca fortalecendo a sua atuação algorítmica para remoção. O conteúdo removido precisa ter a mesma transparência e clareza. É preciso saber o que foi removido e porquê, para que a sociedade possa entender o que pode ou não continuar sendo postado nas plataformas. Contar com os checadores de fatos é crucial. Mas é preciso contar com outros mecanismos também. Não se pode colocar sobre os ombros dos checadores toda a responsabilidade.
"A desinformação é um fenômeno complexo. Leis que criminalizam a sua propagação podem restringir a liberdade não só da imprensa, mas também do cidadão. Por outro lado, deixar apenas para as plataformas resolverem o que deve ser ou não removido pode levá-las a uma remoção excessiva", diz o pessoal do movimento redes Cordiais.
O projeto acerta ao determinar o dever das plataformas de tornar públicas as informações sobre publicações e conteúdos moderados. Mas peca ao privilegiar a regra do "notice and take down", coibida pelo artigo 19 do Marco Civil da Internet, que é inclusive objeto de análise do Supremo Tribunal Federal.
Como o diz o próprio artigo 19, a sua criação se deu "com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura". Voltar ao regime que vigorava antes de 2014 é lançar o Brasil em um cenário de insegurança jurídica, alimentando os incentivos para que os provedores passem a remover conteúdos assim que recebam qualquer reclamação. O risco aqui é a criação de uma Internet menos plural, em que qualquer comentário crítico seria removido por receio de responsabilização.
A definição de "conta inautêntica" também é duvidosa, assim como alguns artigos que fazem menção a elas. E ainda a definição de "disseminadores artificiais", em alusão aos bots, definidos como "qualquer programa de computador ou tecnologia empregada para simular, substituir ou facilitar atividades de humanos na disseminação de conteúdo em aplicações de internet". Há hoje muitos robôs usados para fins não relacionados à prática da desinformação. A generalização é perigosa.
O PL exige que todos que utilizam automação em suas contas em redes sociais declarem esse uso. Acerta nesse ponto. Mas não exige a identificação da origem do conteúdo, no caso do impulsionamento de notícias falsas. Nem sobre quem as financia. É preciso lembrar que o combate à desinformação não passa somente pelo Direito. A luta econômica para regular como se dá o financiamento da produção e disseminação da desinformação também é crucial. Não por acaso o TSE determinou na última eleição que o impulsionamento de propagando política só poderia ser feito por partidos ou candidatos e em real.
Nesse momento, por exemplo, movimentos da sociedade civil, como o Sleeping Giants, têm feito um trabalho massivo para evitar que o sistema de anúncios online que contribui para que popularidade de matérias falsas impeça que elas continuem sendo um negócio cada vez mais lucrativo, notificando empresas que exibem o conteúdo na forma de anúncios em suas propriedades online (sites, redes sociais, vídeos, etc).
Além disso, há muitos conceitos usados de forma inapropriada nos artigos que falam sobre robôs em serviços de mensageria. Ao determinar que provedores de aplicação de mensageria (leia-se WhatsApp e afins) limitem a difusão e assinalem aos usuários a presença de conteúdo desinformativo, o texto pressupõe que a plataforma
deve ter acesso ao conteúdo das mensagens transmitidas de alguma forma.
Enfim, no frigir dos ovos, o PL cria mais problemas que resolve.
Por que tanta pressa?
Alessandro Vieira acredita que há concordância das lideranças partidárias para que a proposta seja votada na próxima semana. Segundo ele, o texto tem o apoio também da Associação Nacional dos Jornais (ANJ) e da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). Que, é sabido, vem em uma cruzada há tempos para redução do poder das plataformas de conteúdo da Internet. Que claro, não têm nada de inocentes nessa história. Mas é preciso separar os problemas e as responsabilidades de cada um, e definir com equilíbrio, as tarefas de todos nós na cruzada contra a desinformação.
As fake news são, antes de tudo, um problema educacional, que requer o engajamento de toda a sociedade. Há dois anos, entrevistei o jornalista e professor Eugênio Bucci a respeito, para o Caderno Entre Dados, do programa Globo Universidade da Rede Globo, que deixa claro o tamanho do desafio inclusive para as próprias empresas jornalísticas. Vale ver o vídeo ou ler a transcrição.
"Em vez de punição, um papel muito eficiente em reduzir a propagação de mentiras e bobagens pode ser delegado à educação digital. Ela precisaria incluir e extrapolar o ensino formal e a capacitação profissional. E ainda deveria se adequar à cada faixa etária, contexto geográfico, racial e social", comenta Paulo Rená, professor de Responsabilidade Civil e Defesa da Constituição, pesquisador do grupo Cultura Digital & Democracia.
Mais de 35 propostas para regular as notícias falsas tramitam no Congresso Nacional. Em 2018, no período eleitoral, o TSE e as casas legislativas se debruçaram exaustivamente sobre o tema. Esse blog fez toda a cobertura, na época, inclusive de uma reunião do Conselho de Comunicação Social que não foi conclusiva, diante das muitas implicações para a liberdade de expressão.
Tem mais: chamou muito a atenção de todos que acompanham o tema proteção de dados, o Senado ter mantido a vigência da Lei geral de Proteção de dados (a LGPD) sob o clamor do combate às fake news. Até o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), afirmou com todas as letras que a LGPD é "principal legislação na prevenção e combate aos ataques criminosos promovidos pelas fake news no país", o que justificaria sua vigência já em agosto deste ano. Não poderia haver ideia mais equivocada. Como lembram advogados da área, em país nenhum se conseguiu coibir a disseminação de fake news por meio de uma legislação desse tipo. Fica a ruim sensação de estarmos à mercê de decisões políticas que, por definição, são obscuras.
O assunto é importante? É. As plataformas têm seu quinhão de responsabilidade? Têm! Mas o assunto não está suficiente maduro para que se legisle apressadamente sobre ele e no calor dos acontecimentos. Como bem lembrou Pedro Dória, em sua coluna esta semana, "se os especialistas têm uma convicção, é a seguinte: a melhor arma contra desinformação digital é ir atrás de quem a financia. Tem gente pagando pela fraude. Até lá, o melhor caminho para este projeto é jogar luz nele e deixar que a democracia atue. Que se permita o debate público e aberto com a sociedade civil".
Vamos cumprir os regimento, senadores! Debater o assunto nas comissões! Estressá-lo com os diferentes autores, para só depois legislar!
As intenções até podem ser boas, mas delas o inferno está cheio, como bem diz o dito popular.
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- Não é apenas no Congresso que o assunto é debatido. Um levantamento recente mostrou que em 21 estados brasileiros e no DF tramitam projetos de lei para multar quem divulgar "fake news" durante a pandemia. Em cinco deles, a norma que prevê punição para quem espalha fake news já está valendo. A depender do ente federativo as multas vão de R$ 224 a R$ 25 mil reais para pessoas físicas e chegam até R$ 50 mil para empresas.
- O IRIS – Instituto de Referência de Internet e Sociedade detalhou ponto por ponto os problemas dos dois PLs. Vale ler o documento com atenção. Assim como é importante prestar atenção nas críticas encaminhadas pelo coletivo Intervozes, pelo Lapin, pela Coalização Direitos na Rede, e pelo Coding Rights.
- As fake news também são um problema econômico. A epidemia de notícias falsas custa à economia global US$ 78 bilhões por ano, estima relatório divulgado no fim do ano passado pela empresa de segurança cibernética CHEQ e a Universidade de Baltimore.
- Se a ideia é aplicar uma punição maior à desinformação, (conforme o excelente levantamento feito por Joaquim Leitão Júnior, delegado de polícia da Polícia Judiciária Civil do Estado de Mato Grosso) podem ser listados outros tipos penais já vigentes na legislação. Por exemplo:– No Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 1940): Crimes contra a honra calúnia, difamação e injúria (respectivamente, artigos 138, 139 e 140), para os quais cabe aumento de pena para condutas online, se a Internet for reconhecida como meio de facilitação da divulgação; Denunciação caluniosa (339), com aumento de pena se praticada sob anonimato ou pseudônimo; Comunicação falsa de crime ou de contravenção (340); Lesão corporal (129); Tentativa de homicídio (14, II; e 121); Curandeirismo (284); Charlatanismo (283).– No Código Eleitoral (Lei nº 4.737, de 1965):Denunciação caluniosa eleitoral e calúnia eleitoral (323), também com aumento de pena em caso de anonimato ou pseudônimo; Impedir ou embaraçar votações (297); Forjar documento (350 e 351).– Na Lei Eleitoral (Lei nº 9.504, de 1997)
Divulgação de pesquisa fraudulenta (33, § 4º; 34; 35); Propaganda eleitoral falsa na internet (57-H).
Moral da história: tem lei de sobra para combater fake news. Resta aplicá-las!
Sobre a autora
Cristina De Luca é jornalista especializada em ambiente de produção multiplataforma. É diretora da ION 89, startup de mídia com foco em transformação digital e disrupção. Foi diretora da área de conteúdo do portal Terra; editora-executiva da área de conteúdo da Globo.com; e editora-executiva da unidade de Novos Meios da Infoglobo, responsável pela criação e implantação do Globo Online. Foi colunista de tecnologia da Rádio CBN e editor-at-large das publicações do grupo IDG no Brasil. Master em Marketing pela PUC do Rio de Janeiro, é ganhadora do Prêmio Comunique-se em 2005, 2010 e 2014 na categoria Jornalista de Tecnologia.
Sobre o blog
Este blog, cujo nome faz referência à porta do protocolo Telnet, que é o protocolo de comunicação por texto sem criptografia, traz as informações mais relevantes sobre a economia digital.